Propostas de enfrentamento ao vírus são consideradas vazias e insuficientes até mesmo por parceiros
O avanço da pandemia do covid-19 no Brasil conseguiu evidenciar o que, de certo modo, se camuflava no cotidiano da realpolitik brasileira: a total irresponsabilidade nas ações e o despreparo de Jair Bolsonaro (sem partido) para dirigir a nação e lidar com uma situação de crise.
Enquanto o mundo se preparava para a explosão dos números de infectados, a Itália entrando em colapso, depois da China, e a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarando o surto do vírus covid-19 como de impacto mundial, Bolsonaro declarava, no dia 10 de março último, há apenas nove dias, durante um discurso em um evento em Miami, nos Estados Unidos, que a "questão do coronavírus não é isso tudo" , que se tratava muito mais de uma "fantasia" propagada pela mídia no mundo todo.
::Leia também: Comitiva de Bolsonaro tem 17 infectados por coronavírus::
Por uma grande ironia do destino, que alguns religiosos chamariam de castigo divino, ao desembarcar na capital federal, a comitiva de Bolsonaro trouxe, a bordo, um exemplar da “fantasia”. E a espalhou pela Praça dos Três Poderes, com consequências que ainda não são possíveis de mensurar. A contaminação causada por seu grupo de viajantes é a maior do Distrito Federal, já atingiu vários de seus ministros, três senadores até o dia de hoje, entre eles o presidente do Senado e do Congresso Nacional Davi Alcolumbre, e um deputado federal.
Por 14 meses Bolsonaro apostou suas fichas no enfrentamento com o Legislativo e no tratamento de opositores como inimigos, baseando-se em seu apoio popular para se impor, refutando o diálogo e protagonizando episódios grotescos no desrespeito a jornalistas. Em certa ocasião, o presidente resolveu afirmar que a imprensa ainda não havia entendido que ele venceu as eleições. Do alto de sua fineza de trato, afirmou: “Eu Johnny Bravo, Jair Bolsonaro, ganhou, (sic) porra”! E repetiu: “Ganhou, PORRA!”.
No imaginário distorcido dele, vencer eleições significa um salvo-conduto para não ser questionado e fazer o que quiser. Um modelo “democrático” único.
Paralelamente, as redes sociais são usadas por ele, família e aliados, para estimular o ódio de seus seguidores a quem não reza na cartilha bolsonarista, quem rompe ou questiona. E a fila de desertores só aumenta: Alexandre Frota, Joice Hasselman, Janaina Paschoal...
O país vem sendo conduzido no automático. Os interesses liberais do “Deus mercado” sendo paulatinamente aprovados no parlamento conservador, aprofundando as reformas iniciadas no governo Temer.
Tragédias ocorrem de forma sucessiva e vão sendo deixadas de lado sem respostas, como o aumento das queimadas e do desmatamento na Amazônia e o desastre ambiental do óleo nas praias do Nordeste, sem receber a devida resposta do governo federal.
Na disputa interna no governo entre os seguidores de Olavo de Carvalho, os pragmáticos da economia liderados por Guedes e os militares, o país ficou à deriva, carente de um projeto nacional. Enquanto isso, na presidência, a figura tenebrosa, cuja ignorância se funde com uma disposição incansável pelo bizarro, continuou suas ações contraditórias, no que sempre chamei de instabilidade estável.
Tudo seguia. Até que se deparou com o covid-19. Jair Bolsonaro se revelou nessa conjuntura, para os que ainda não o enxergavam.
Os discursos proferidos até determinado momento jogavam com possibilidades de ruptura com a democracia, mesmo que não fossem visíveis na conjuntura. Uma realidade que poderia ser alterada muito rapidamente em ambiente de crise institucional, que poderiam construir o ambiente ideal para a aventura golpista.
Retornando dos Estados Unidos, Bolsonaro recebeu a primeira resposta aos seus desatinos. No dia 11 de março o Congresso Nacional derrubou o veto ao projeto de lei que aumenta o limite máximo de renda para que idosos e deficientes tenham acesso ao BPC (Benefício de Prestação Continuada), obrigando o governo a recuar.
Pressionado pela equipe econômica, diante da repercussão negativa do chamamento para os atos do dia 15 de março, e com a divulgação de contaminados em sua equipe, o presidente boçalidade colocou uma máscara e pediu aos seguidores para não irem às ruas. No entanto, apesar de estar de quarentena sob suspeita de ter contraído o vírus, novamente se contradisse e foi, ele mesmo, cumprimentar manifestantes na frente do Palácio da Alvorada.
Naquele momento acionou um gatilho de “basta”. As críticas se multiplicaram pelas redes, na imprensa nacional e internacional. A manifestação de gritos, panelas e outros barulhos nas janelas nos dois últimos dias apontam para uma perda de popularidade crescente. A fala do deputado Eduardo Bolsonaro acirra acusando a China de propagar o vírus, com resposta dura do embaixador e pedido de desculpas do presidente da Câmara Rodrigo Maia, acirra o conflito nas relações internacionais.
Acuado, o governo mandou ao Congresso um pedido para decretação de estado de calamidade, o que libera o governo do cumprimento da meta da Lei de Responsabilidade Fiscal e possibilita a aprovação de crédito extraordinário para o combate à epidemia.
Uma ocorrência como um vírus cuja propagação atinge proporções gigantescas, requer um Estado forte, políticas públicas eficazes, um investimento alto nos redutores de danos. Para um governo que defende um Estado mínimo e vem promovendo e aprofundando os cortes nos gastos públicos, é encarar a contradição de frente. Só é possível combater o coronavírus com investimento pesado em saúde.
Com a Emenda Constitucional nº 95, aprovada pelo governo Temer, apoiada e mantida pelo governo Bolsonaro, o Sistema Único de Saúde – SUS, já perdeu R$ 22,5 bilhões entre 2018 e 2020.
Impossível recuperar o prejuízo em meio e por causa de uma crise. Mas, o vírus vai passar. Como todo vírus, vai ter o pico, depois será decrescente. A economia do mundo e do Brasil, no entanto, não serão mais as mesmas. Não se sabe que lições os liberais terão aprendido com a tragédia, se é que haverá algum aprendizado.
Por enquanto, temos no Brasil um governo em quarentena, com ações limitadas por sua capacidade operacional, por erros grotescos de condução da política fiscal e equívocos renitentes para atender interesses privados.
Sem método e sem diálogo construtivo, apostando no republicanismo das instituições que gostaria de destruir, Bolsonaro vive seu pior momento.
As propostas de enfrentamento ao vírus são consideradas vazias e insuficientes até mesmo por parceiros do governo e os Estados onde os governadores radicalizam nas medidas vão ganhando destaque na conjuntura. Se Bolsonaro contraiu o covid-19 como alguns especulam, clinicamente falando, não se sabe, mas o vírus já o atingiu em cheio. E sua quarentena promete durar mais do que a do Brasil. Se ele sobreviver.
Edição: Rodrigo Chagas