A liderança de mulheres nesses processos, garante a inclusão da diversidade necessária às revoluções
“A experiência de todos os movimentos de libertação atesta que o êxito de uma revolução depende do grau de participação das mulheres” (Lênin, 1918)
No último 8 de Março milhares de mulheres foram às ruas em todo o mundo reivindicar direitos e lutar contra as desigualdades e injustiças que demarcam uma realidade já bastante conhecida.
O aumento da desigualdade é uma realidade global e tem crescido sem precedentes. Como mostra o último relatório da Oxfam (2020), além da manutenção do abismo dos rendimentos entre homens e mulheres, a concentração de renda atingiu níveis recordes: a fortuna do 1% mais rico do mundo corresponde a mais do que o dobro da riqueza acumulada por 6,9 bilhões de pessoas, ou seja, 92% da população mundial.
E mais, os 22 homens mais ricos do mundo têm uma riqueza superior à de todas as mulheres da África (mais de 650 milhões de mulheres). O relatório também mostra que os trabalhos mal remunerados são ocupados majoritariamente pelas mulheres, e que elas respondem por mais de 75% de todo trabalho de cuidado não remunerado do mundo.
Esse grande abismo baseia-se em um sistema econômico sexista e falho, que coloca as mulheres no centro do debate da atual crise do capitalismo: são as primeiras a sentir os efeitos dessa crise, com a precarização dos seus trabalhos, o aumento da informalidade e salários mais baixos.
O colapso de sistemas cruciais de apoio social promovido pelo mais recente avanço neoliberal, como o sistema previdenciário, a educação de crianças (creches) e o cuidado dos idosos, também impõe um ônus adicional à “economia do cuidado” amplamente mantida pelas mulheres.
Soma-se a isso a naturalização da violência contra as mulheres, em um mundo que permite que mais de 90 mil mulheres por ano sejam vítimas de feminicídio.
Vivemos a ampliação de uma reação conservadora no sul global: organizações religiosas e de direita promovem mobilizações, ataques concertados às políticas públicas em favor dos direitos das mulheres e das pessoas LGBT+ (como a eliminação de qualquer menção à palavra gênero nos currículos do ensino médio ou a limitação das possibilidades de acesso à interrupção da gravidez), e uma campanha permanente nas redes sociais e nos meios hegemônicos contra o que chamaram de “ideologia de gênero”.
Embora esses movimentos tenham sido mais fortes na América Latina, eles estão presentes em diversos países do mundo e ameaçam os ganhos duramente conquistados.
Esse cenário de brutalização da opressão das mulheres tem atraído muitas delas para as primeiras fileiras de uma crescente revolta social no globo. Se por um lado estão no centro da exploração econômica promovida pela crise do capitalismo, também – e por isso – passam a assumir protagonismo em diversas lutas sociais que emergiram no último período na Ásia, África e América Latina em forma de protesto, resistência e organicidade para superar suas condições concretas.
As experiências dos cortes na economia do cuidado, a difusão de campanhas ideológicas contrárias aos direitos das mulheres, dentre outros fatores, tem incentivado a radicalização das mulheres nas organizações de lutas sociais em diversas partes do mundo.
Emerge, assim, nos últimos anos, um feminismo reativo às experiências das políticas (patriarcais) de ajuste estrutural. Cresce o número de mulheres que passam a se organizar, a participar de manifestações e a exigir um novo modelo que assegure uma visão feminista e se tornam mais ativas na luta por um mundo diferente.
Na América Latina, o crescente controle sobre o corpo feminino, por meio da ampliação do cerceamento estatal sobre a sexualidade e a capacidade reprodutiva das mulheres, desencadeou protestos e organização de mulheres, como tem sido o caso dos pañuelos verdes na Argentina, que lutam pela descriminalização do aborto, por exemplo.
Brasil
No Brasil, a famosa marcha do “Ele Não”, durante a campanha eleitoral de 2018, foi a maior manifestação de mulheres da história do país e aglutinou milhares de mulheres e militantes pelas ruas de mais de 114 cidades do país, com uma campanha contra o ainda candidato à presidência Jair Bolsonaro.
Em 2019, sob a liderança de Bolsonaro, a repressão, o autoritarismo, o moralismo e os índices de violência contra as mulheres aumentaram no Brasil. No primeiro semestre do novo governo, os casos de feminicídio aumentaram em 44% em São Paulo, por exemplo, comparado com o ano anterior.
Em um país em que a cada 4 segundos uma mulher é agredida, o investimento em políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres caiu de R$ 119 milhões em 2015 para R$ 5,3 milhões em 2019. As mulheres negras são as mais atingidas por essa realidade: enquanto a taxa de homicídio contra mulheres brancas se mantém, a das mulheres negras cresceu na última década.
Olhando para os impactos acerca da economia do cuidado no Brasil, o investimento em creches e pré-escolas também foi o menor da última década: comparando o primeiro semestre de 2014 com o de 2019, o repasse para a construção de novas unidades diminuiu em 98%.
Contrariando a tendência do período anterior, o número de trabalhadoras domésticas volta a crescer em termos absolutos e proporcionais desde 2015, e em 2019 atesta o menor rendimento desse trabalho no período (veja mais aqui).
Este novo cenário, de maior descaso e de cortes no que atinge diretamente a vida e as condições de trabalho das mulheres, vem acompanhado de um processo de ampliação do conservadorismo e autoritarismo político, social e cultural, e exigirá um novo patamar de resistência e organização das mulheres no país.
Chile
No Chile, a luta feminista também acumulou forças nos últimos anos. Não apenas nos massivos 8 de março, mas também nas recentes manifestações da revolta popular no país, as mulheres chilenas saíram às ruas para lutar por uma transformação estrutural do país, enfrentando a repressão brutal da polícia e dos militares, que haviam defendido cegamente os interesses do capital e seus representantes políticos.
Durante esse período, a violência sexual policial fez parte das violações sistemáticas dos direitos humanos que foram denunciadas por várias organizações internacionais. Diante da impunidade que o governo de Sebastián Piñera instala, o movimento feminista chileno recorreu a todos os meios para resistir e tornar visível essa violência, alcançando um eco internacional com a atuação do coletivo Las Tesis, replicado em várias partes do mundo.
Mas a violência não impediu o inevitável avanço do feminismo, que continua a trabalhar em solidariedade com outros movimentos sociais que dizem NÃO + à precariedade da vida imposta na ditadura chilena e mantida até hoje.
Nesse sentido, uma das principais lutas travadas no Chile tem sido a defesa de um processo constitucional que permita avançar efetivamente na superação do neoliberalismo e que garanta certas condições mínimas para uma participação efetiva do povo mobilizado. Parte dessa luta é a busca pela paridade de gênero no futuro corpo constituinte.
Venezuela
Na Venezuela, as mulheres têm sido essenciais na reconstrução de estruturas sociais erodidas por décadas de austeridade capitalista. Seu trabalho tem sido fundamental para o desenvolvimento do poder popular e para a criação da democracia participativa. 64% dos porta-vozes das comunas estão nas mãos de mulheres, assim como a maioria das líderes dos conselhos comunais e 65% da liderança dos Comitês Locais de Abastecimento e Produção.
As mulheres exigem não apenas igualdade no local de trabalho, mas também na esfera social, onde as comunas são os átomos do socialismo bolivariano. As mulheres têm se esforçado para construir a possibilidade de autogoverno, construindo um poder duplo e, portanto, lentamente corroendo a forma liberal do Estado.
Índia
Na Índia, o atual governo conservador do primeiro ministro Modi, do partido BJP, não fez nada para melhorar as condições de trabalho das mulheres em termos de políticas, como equiparação salarial, implementação de creches no local de trabalho ou garantia de locais de trabalho seguros e sem assédio. Em vez disso, seus esforços foram voltados para recuos e diminuição das liberdades que as mulheres conquistaram ao longo de décadas de luta.
No entanto, os ataques severos e contínuos contra as mulheres e seus direitos foram enfrentados com uma onda massiva de resistência em toda Índia. Elas lideram o movimento contra a Lei de Emenda à Cidadania, o Registro Nacional de Cidadãos e o Registro Nacional de População, que violam fundamentalmente as disposições da Constituição Indiana (veja mais aqui).
Em várias cidades, municípios, distritos e aldeias, as mulheres estão na vanguarda do movimento contra o ataque liderado pelo BJP ao direito à cidadania.
África do Sul
Na África do Sul, as taxas de violência contra mulheres são terríveis, incluindo a violência sexual. Parte da oposição a essa crise tem sido atraída por discursos conservadores, que apresentam soluções pouco democráticas e à direita, como o retorno à pena de morte, suspensão do Estado de direito ou que os homens “protejam” as mulheres.
Os feminismos populares, que estão florescendo em alguns setores, continuam sendo ignorados na esfera pública de elite e na maior parte da academia e ONGs.
No entanto, nem todas as lutas na África do Sul foram cooptadas pela ação das ONGs nas lutas sociais. Nesse sentido, Abahlali baseMjondolo é um exemplo-chave de um caso contemporâneo do feminismo popular.
Abahlali baseMjondolo é um movimento de moradores de favelas que se tornou o maior movimento social desde o fim do apartheid; o movimento é formado em sua maioria por mulheres e muitas ocupam posições de liderança.
Por isso, além da luta por moradia e justiça social, muitas vezes elas levantam questões feministas expressas na linguagem do empoderamento político das mulheres.
Em oposição ao capitalismo da austeridade, em todas as partes do mundo as mulheres têm mostrado sua criatividade, força e solidariedade não apenas contra políticas neoliberais e contra o aumento do conservadorismo, mas também a favor do experimento socialista.
Torna-se fundamental a promoção de uma solidariedade internacional tendo em vista a semelhança desses processos, e também das alternativas que estão sendo criadas pelas mulheres.
O que fica evidente com esses exemplos acima descritos é que, não apenas a participação, mas a liderança de mulheres nesses processos, garante a inclusão da diversidade necessária às revoluções.
Para saber mais detalhes sobre esse estudo, confira aqui a primeira publicação da série feminista do Instituto Tricontinental.
Renata Porto Bugni / Instituto Tricontinental de Pesquisa Social
Edição: Leandro Melito