Tampouco “esperança” é um sentimento individual; tem que ser produzido por pessoas, juntas
Vivemos tempos miseráveis. As estatísticas de privação e morte são horríveis. Muitas pessoas lutam contra a fome; aproximadamente nove milhões morrem a cada ano por complicações devido à desnutrição (uma criança morre em algum lugar do mundo a cada dez segundos por causa disso).
Muitos de nós, jornalistas e escritores, nos tornamos atuários de sofrimento. O clima geral é de desespero; as condições gerais da vida estão vazias. A retórica da esperança soa menos como inspiração e mais como uma repreensão. Florestas queimam. Os condenados do mar afundam no Mediterrâneo. Corpos de mulheres aparecem no deserto de Chihuahuan. Bandidos fascistas perambulam pelas ruas de Déli. A diferença entre a retórica da esperança e a condição de desespero é vasta. Não há ponte entre eles. Vivemos na ferida. Esta é uma carta dessa ferida.
Onde quer que se olhe, as notícias são alarmantes. As palavras-chave para o presente são bastante diretas: COVID-19, crise financeira, mudança climática, feminicídio, xenofobia e a resiliência dos políticos neofascistas e as multidões que eles convocam para as ruas. Nenhuma grande profundidade é necessária para se aterrorizar com o que está acontecendo à medida que a grande ferida se espalha pelo planeta. O pânico é uma reação natural, apressada pelo fim generalizado dos laços sociais.
A ideia de vínculos sociais ou mesmo de sociedade é tão convincente em nosso tempo. Está ficando cada vez mais difícil experimentar a sociedade de maneira civil: o discurso político parece ter emergido dos esgotos, e a compaixão diante do sofrimento parece ter evaporado à medida que os neofascistas propagam a rigidez do machismo tóxico. Esse não é apenas um problema da classe política – é um problema que deve estar associado à erosão do Estado e das instituições sociais que, de outra forma, deveriam tornar a vida mais rica. Se as pessoas têm dificuldade em conseguir um emprego, se os empregos são mais estressantes, se os tempos de deslocamento aumentam, se é difícil obter assistência médica, se aposentadorias se deterioram diante de gastos mais altos (incluindo impostos) e se fica cada vez mais difícil lidar com a vida cotidiana – bem, então é fácil esperar que os ânimos se esgotem, que a raiva apareça e que haja uma miséria social geral em exibição.
A civilidade não é apenas uma questão de atitude. A civilidade também é uma questão de recursos. Se usássemos nossa considerável riqueza social global para garantir um meio de vida decente para todos e todas, para garantir atendimento médico aos idosos e idosas, para garantir o enfrentamento de nossos problemas prementes de maneira coletiva, haveria tempo de lazer e descanso entre amigos, poderíamos ser voluntários em nossas comunidades, nos conhecermos e ficarmos menos estressados e bravos. Tampouco “esperança” é um sentimento individual; tem que ser produzido por pessoas fazendo coisas juntas, construindo comunidades, lutando por seus valores.
A ideia da “grande ferida” nos chega de Frantz Fanon, que escreveu em “A família argelina” (1959) que o intelectual revolucionário deve “olhar mais de perto a realidade da Argélia. Não devemos simplesmente passar por cima disso. Pelo contrário, devemos andar passo a passo ao longo da grande ferida infligida ao solo argelino e ao povo argelino”. A Argélia estava no meio de sua luta de libertação nacional, lutando contra o que Fanon chamou de “guerra alucinatória” contra os franceses. A afirmação do valor do ser humano dentro dessa “grande ferida” foi recebida com uma avalanche de violência colonial. Nossa ferida é igualmente alucinatória, marcada por formas cada vez mais sombrias de violência e pela persistente urgência da luta.
Do escritório do Tricontinental em Joanesburgo (África do Sul) vem o Dossiê n. 26 – Frantz Fanon: o brilho do metal (março de 2020). O dossiê se baseia na obra de Fanon, bem como no trabalho daqueles que foram influenciados por ele e depois desenvolveram suas ideias, produzindo uma das melhores breves introduções ao trabalho de um pensador importante para os nossos tempos. Uma das ideias mais prementes de Fanon é que o intelectual não pode simplesmente focar o universal e evitar a sujeira das lutas cotidianas; “A vida de Fanon”, observa o dossiê, “foi marcada por um movimento permanente, corajoso e militante no presente e na especificidade das situações em que ele se encontrava”. A emancipação da miséria da ferida não ocorrerá automaticamente, já que para produzir uma nova humanidade será necessário o que Hegel, em sua Fenomenologia do Espírito, chamou de “a seriedade, o sofrimento, a paciência e o trabalho do negativo”, em outras palavras, para Fanon, compromisso com as lutas em nosso lugar e em nosso tempo.
Como Fanon observou notoriamente, cada geração recebe seu projeto. Para Fanon, esse projeto era a luta de libertação nacional, que ele via como uma etapa necessária para um genuíno internacionalismo. Essa é a razão pela qual Fanon, nascido na Martinica, achou tão fácil entrar na luta do povo argelino; ele não via a luta na Argélia como separada da de todo o Terceiro Mundo. Foi como parte da delegação argelina que ele visitou Gana pela primeira vez, em dezembro de 1958, para o Congresso do Povo de Toda África. Foi em Gana que ele conheceu Kwame Nkrumah (Gana), Julius Nyerere (Tanzânia), Sékou Touré (Guiné) e, é claro, Patrice Lumumba (Congo). Ele tentou mobilizar o apoio de Gana, Guiné e Mali para pegar em armas na Argélia por meio da fronteira sul (em setembro de 1960, Fanon viajou pelos antigos caminhos comerciais do Mali em direção à Argélia para testar a rota); e, quando Lumumba foi ameaçado no Congo, em agosto de 1960, Fanon instou os membros do Congresso a enviar uma Legião Africana para ajudar o governo, o que não foi feito. Não havia fronteira para a esperança de Fanon pela descolonização da África e de todo o mundo colonizado.
Quando Lumumba foi assassinado em 17 de janeiro de 1961, Fanon escreveu um obituário comovente para ele. Por que Lumumba foi assassinado? “Lumumba acreditava em sua missão”, escreveu Fanon – uma missão para libertar seu povo, para garantir que seu povo não vivesse mais em grande pobreza e indignidade, apesar das riquezas do Congo. Ele foi morto por esta missão, uma missão com a qual Fanon concordou plenamente. “Se Lumumba está no caminho, Lumumba desaparece”, escreveu Fanon. Estar vivo, ele disse, é lançar-se em tal missão, participar das lutas que virão e que podem criar emancipação. Eles mataram Lumumba, em 1961, mas “ninguém sabe o nome do próximo Lumumba”, escreveu Fanon, de maneira realista e otimista. A necessidade da luta produziria outro movimento, com seus próprios líderes; isso era inevitável. A esperança existe nessa inevitabilidade.
Em 5 de março, no The Forge, em Braamfontein, o vibrante distrito estudantil de Joanesburgo, o dossiê n. 26 foi lançado em um colóquio sobre a filosofia e a influência de Fanon. A reunião contou com a presença de militantes de base, sindicalistas, artistas, estudantes e acadêmicos, incluindo figuras como o eminente filósofo Mabogo P. More e o “Bispo Rebelde”, Rubin Phillip. Os principais estudiosos de Fanon, Nigel Gibson, Lewis Gordon, Michael Neocosmos e Zikhona Valela, falaram sobre o trabalho de Fanon como professor, clínico e teórico. Eles se envolveram com a questão da práxis de dentro do contexto da crise da pós-colônia; sua atenção estava concentrada em questões de organização e resistência da grande ferida. Em momentos como esse, a esperança radical floresce e as ideias emancipatórias, forjadas no turbilhão da luta, assumem o brilho do metal.
Claudia Jones nasceu dez anos antes de Fanon em Port of Spain (Trinidad e Tobago). Jones migrou com seus pais para os Estados Unidos; lá, no meio da campanha para salvar os réus de Scottsboro em 1936, ela se tornou comunista. Membro do Partido Comunista dos Estados Unidos (CPUSA), Jones seria deportada para o Reino Unido em 1955 (onde foi fundamental na fundação do Carnaval de Notting Hill). Jones viajou ao redor do mundo, para a URSS e a China, certamente, mas também para reuniões da Federação Democrática Internacional da Mulher (inclusive para a reunião de 1952 em Copenhague).
Em 1949, Jones publicou um ensaio de referência no jornal teórico da CPUSA, Political Affairs, “Um fim à negligência dos problemas da mulher negra”. Esse ensaio se envolve diretamente com a questão do racismo e de sua indignidade. Várias vezes em seu ensaio, Jones usa a palavra particular. Ela diz que existe uma opressão enfrentada por inúmeras pessoas ou que a exploração atinge os trabalhadores negros, mas depois enfatiza que o sistema penaliza “particularmente” trabalhadoras negras, de maneira especialmente severa.
Essa severidade é o interesse dela, o que significa que qualquer análise da emancipação deve ser profundamente marcada pela avaliação específica das hierarquias de opressão e que deve atender à lógica específica de cada uma dessas camadas (ou “estrato”, como ela diz); que a “particularidade” da opressão insiste que não apenas a classe deve ser levada a sério, não apenas a raça deve ser levada a sério, mas que o gênero deve estar no centro da análise e da práxis que emerge dela (como reconhecemos nos Estudos Feministas nº 1 do Instituto Tricontinental).
Com essa especificidade analítica, as mulheres negras de todo o mundo estão, para Jones, na vanguarda de toda luta contra o capitalismo. Jones escreve que a especificidade e a “severidade especial” da condição das mulheres negras devem ser levadas a sério, para não isolar as mulheres negras das lutas mais amplas; o ponto, ela observa, é que, se a causa das mulheres negras for “promovida”, ela ocupará seu “lugar de direito” na “liderança proletária do movimento de libertação nacional e por sua participação ativa contribuirá para toda classe trabalhadora americana, cuja missão histórica é a conquista de uma América socialista – a garantia final e total da emancipação da mulher”. A palavra-chave aqui é liderança.
Lendo Jones novamente, eu a imagino encontrando Fanon em uma dessas reuniões internacionais – talvez em Tashkent ou Beirute – e discutindo suas teorias revolucionárias; imagino-os dois radicais do Caribe conversando sobre “esticar levemente” Marx, como Fanon escreveu em seus últimos anos. É justo que Fanon tenha sido enterrado na Argélia e que Jones tenha sido enterrada à esquerda de Marx no Highgate Cemetery, em Londres. Esses dois intelectuais notáveis insistem que os intelectuais participem dos grandes projetos de sua época, que sejam específicos sobre as particularidades da opressão e que nos ajudem a encontrar o caminho para sair da grande ferida.
Edição: Luiza Mançano