Rio de Janeiro

MARIELLE FRANCO

Viúva de Anderson fala sobre júri popular: "Crime foi um atentado à democracia"

O Brasil de Fato conversou com a advogada Agatha Arnaus, viúva do motorista que conduzia a vereadora Marielle Franco

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Anderson Gomes, Agatha Arnaus e Arthur
"Fico grata quando perguntam pelo Arthur e com o carinho pelo Anderson", contou Agatha - Reprodução

Dois anos após a morte de Anderson Gomes, que conduzia a vereadora Marielle Franco (Psol) quando o carro foi alvejado e os dois morreram, o Brasil de Fato conversou com a viúva do motorista, a advogada Agatha Arnaus. Na entrevista, ela falou das mudanças na sua vida nesses últimos 24 meses e da rotina com o filho, Arthur, de três anos e portador de uma síndrome associada à onfalocele, tipo de doença ligada à má formação do intestino na cavidade abdominal.

Sobre a decisão da Justiça de levar os executores do crime a júri popular, Agatha disse que esperava por isso. “Não passava pela minha cabeça que seria diferente, tem que ser assim, tem que ir para o júri, porque foi um atentado à democracia, à política, à sociedade de um modo geral, algo muito grave”.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato: Qual é o balanço que você faz da sua vida nesses últimos dois anos?

Agatha Arnaus: Esses dois anos foram bem corridos, com muitas questões para resolver, muitas delas ligadas ao Arthur, consultas médicas, muitas descobertas aconteceram nesse período. Em relação ao Anderson, foram muitas audiências, o processo de inventário, essas questões mais burocráticas. Foi também um período de descoberta pessoal, de juntar força e de me conhecer, porque em determinados momentos a gente só sabe como lida com o problema quando ele acontece.

Que mudanças você precisou fazer na sua vida nesses últimos 24 meses? O que mudou?

Tudo mudou, não tem nada na nossa vida que não tenha mudado, exceto algumas brincadeiras e o carinho que mantive com o Arthur. Mas tudo mudou. Minha rotina, eu e Anderson tínhamos nosso acordo de dentro de casa de ficar com Arthur, um trabalhar enquanto o outro estava com ele. Era tudo muito dividido, de afazeres domésticos ao cuidado com o Arthur. Eu fiquei sozinha, embora tenha meus familiares e minha rede de apoio para alguns momentos. Passei um ano na casa da minha mãe, com suporte, porque eu estava na fase de organizar meu horário com trabalho, a escola dele, a necessidade dele ir aos médicos. Agora é que voltei para a casa que a gente morava e estou fazendo tudo mesmo sozinha com o Arthur.

Você acredita que a saúde e o tratamento do Arthur foram prejudicados pela perda do Anderson como pai?

Não acho que o Arthur tenha saído prejudicado com a perda do Anderson em relação à saúde e ao tratamento dele. Houve alguns episódios, ele ficou oito meses passando mal, do dia 13 para o dia 14 ele tinha febre, vomitava e isso foi até setembro de 2018, quando ele teve uma obstrução intestinal, foi internado e precisou operar às pressas. A gente nem sabia se ele ia aguentar, foi um momento difícil. Não sei o que é pior: ter perdido o Anderson ou ter ficado naquele momento achando que também ia perder o Arthur. Mas em relação ao tratamento do Arthur, as coisas só se encaminharam agora, porque antes não tínhamos o diagnóstico da síndrome dele. Todos os exames que fizemos, enquanto Anderson era vivo, só vinham negativos para síndromes. Foi no final do ano passado que o exame acusou que o Arthur tem seis alterações genéticas. Acabou que o Anderson não soube disso. Mas atrapalhar, acho que não, porque pela síndrome o Arthur não tem desenvolvimento de uma criança da idade dele. Tirando esse período que eu acredito que ele somatizava, acho que ele ainda não compreende perfeitamente o que aconteceu. E eu tentei fazer ele levar a vida dele da forma mais normal possível.

Como você vê as sucessivas mudanças da investigação entre as esferas estadual e federal?

Essa “competição” atrapalha um pouco, faz perder o foco da investigação, porque tem que se parar de investigar para resolver um incidente aqui, para de investigar por uma intriga ali. E no meio do processo, que já estava correndo em relação ao Ronnie e ao Élcio, tinha que se parar para decidir se ia federalizar ou não. Isso enfraqueceu, tomou tempo e desviou a atenção do que era necessário. Se fosse para federalizar, que fosse no início, e com os dois presos.

Qual é a sua avaliação sobre a decisão da Justiça de levar Ronnie Lessa e Élcio Queiroz ao júri popular?

Eu confesso que já esperava uma decisão como essa, não passava pela minha cabeça que seria diferente, tem que ser assim, tem que ir para o júri, porque foi um atentado à democracia, à política, à sociedade de um modo geral, algo muito grave. Até me perguntam se acho que foram eles dois. Foram. Para se chegar no ponto em que está agora, de irem à júri popular, é preciso de um mínimo de provas. Não tenho acesso profundo ao processo, não fico pesquisando ou indo à delegacia, até porque não tenho tempo. Leio notícias, vejo as informações, tem os nossos advogados, então fico sabendo das coisas por esse meio. Mas para chegar a esse ponto, de já ter esse encaminhamento, há materialidade, sim, e provas que corroborem isso.

Existe uma politização da investigação nas esferas do poder no âmbito federal, seja no governo Temer ou Bolsonaro?

Com a Marielle como vereadora, essa politização seria inevitável. Não tem como desvencilhar uma coisa da outra, ela era uma representante política. Então, há, sim, essa politização nos dois governos.

A comoção internacional em torno desse crime é um peso para você?

Não é um peso, é claro que no início de março começaram as notícias pelos dois anos, com pessoas fazendo contato para saber como estamos, reportagens, começa a passar muito na TV, então em alguns momentos a dor aumenta, mais do que já vinha. Eu evito muito que o Arthur veja, até porque ele está sempre comigo. Ter a comoção nacional, atos, cartazes, acho que tem que ser assim, não seria diferente até pela representatividade da Marielle. Não tem a ver essencialmente com o Anderson, porque o atentado não era para ele. Confesso que fico feliz, porque quando me param é para perguntar pelo Arthur, as pessoas viram nossa história, viram nossa vida, e eu fico bastante grata por isso, com essa preocupação, e com o carinho que sempre dispendem ao Anderson.

E a família do Anderson fica impactada com essa comoção?

Quem não consegue ver de jeito algum as manifestações, toda essa visibilidade internacional, nem reportagem, não consegue participar de nada, é a minha sogra, ela sofre muito até hoje, para mãe é muito complicado. Nesses dias, ela me disse que gosta de pensar que o Anderson está em Minas Gerais, viajando comigo, e que uma hora ele vai voltar. Eu gostaria muito que fosse verdade, gostaria muito que ele voltasse. Mas ela é uma das pessoas que não assiste a nada, agora é que ela voltou a colocar fotos dele em casa, porque é muito dolorido e sempre vai ser uma ferida. Não tem mãe que perca o filho e não sinta a falta de um pedaço.

Você tem esperança na elucidação completa do crime, desde os executores à descoberta dos mandantes?

No começo das investigações, eu tinha uma esperança mais forte. Passados dois anos, essa esperança deu uma diminuída, para ser bem sincera. Tanto tempo assim, coisas se perdem, provas, já não sei mais se tenho a esperança do começo. Mas ainda espero que a gente chegue no mandante ou nos mandantes. Tenho mais preocupação que isso não aconteça em razão do decurso do tempo e da dificuldade de as coisas serem apuradas e provadas.

Edição: Vivian Virissimo