"Tentaram nos enterrar, mas não sabiam que éramos sementes”. As palavras de ordem que ecoam nas mobilizações das mulheres brasileiras, ecoaram ainda mais alto após o assassinato de Marielle Franco que completa dois anos neste sábado (14).
A trajetória de luta da socióloga, defensora dos direitos humanos e ativista feminista não foi interrompida com o crime que tirou sua vida no dia 14 de março de 2018 e que segue sem resposta. A resistência da vereadora carioca se tornou semente e seu legado segue dando frutos pelo Brasil e pelo mundo.
O legado de Marielle está nas ruas e nos espaços de decisão política do país. O principal deles é hoje a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), em que as três assessoras da vereadora agora ocupam os cargos de deputadas estaduais e seguem levando as pautas das mulheres negras, da comunidade periférica e LGBT ao legislativo carioca.
Dani Monteiro, Mônica Francisco e Renata Souza, são as sementes que Marielle plantou muito antes da sua barbara execução. A luta da vereadora e militante foi de encontro às mulheres, mulheres negras, da população LGBT e também da população da favela e da periferia. As parlamentas e amigas concordam e reforçam que a Marielle encarnou no seu corpo e na sua vida todas essas lutas.
“Marielle deixa um legado gigante e pelo seu gigantismo, não poderia apequená-lo em uma só figura ou em um só grupo, seu bom recado é muito claro para toda a humanidade, que a humanidade não se desumanize”, resume Renata Souza.
O sonho de candidatura de todas as parlamentares hoje eleitas foi construído junto com a vereadora, que na época projetava ser vice-governadora na chapa de Tarcísio Motta (Psol).
“A importância da Marielle para minha vida política é total, o sonho da minha candidatura nasce a partir dela, então ela é minha madrinha mentora na política”, relata Mônica Francisco.
"Uma sobe e puxa a outra"
A deputada aponta que essa mobilização da ativista veio antes do crime por meio da filosofia "uma sobe e puxa a outra" e começou a provocar em uma parte da sociedade o pensamento e o olhar mais apurado em relação à presença das mulheres negras na política.
Foi assim também com Dani Monteiro, que com 27 anos foi a candidata mais jovem a se tornar deputada. “Pessoalmente ela foi me motivando a continuar. Isso já embasa a importância política, que eu vejo que pra mim enquanto pessoa, a esperança que ela me passava e a certeza que a gente estava caminhando para o rumo certo da história. Mas isso é também a importância política que é para todos e todas”, conta.
Além da luta de Marielle e de outras mulheres negras “que vieram antes delas” pela ocupação desse espaço, as parlamentares pontuam que o resultado nas urnas também foi uma resposta social aos que tentarão silenciar um projeto de sociedade.
“Nós também somos resposta, resposta à invisibilização da mulher negra, resposta à execução de Marielle, resposta à interrupção de um mandato que representava bandeiras muito importantes, que falam da maioria social desse país, que são mulheres, mulheres negras, jovens negros, a população mais vulnerável de periferias”, afirma Francisco.
Nesse sentido, Dani Monteiro destaca que assim como ela é semente de Marielle, todos os outros “favelados e faveladas que não aceitam o dia a dia de violação de direitos” nas favelas também são sementes.
As deputadas seguem na “resistência continua e cotidiana” num espaço que sempre foi majoritariamente branco, mas que hoje precisa lidar com suas presenças e bandeiras. Isso também se traduz na realização das propostas ligadas ao legado de Marielle e história do movimento negro.
"A resistência cotidiana onde a gente alia a experiência trazida do movimento social, as bandeiras que são importantes pra nós, com o fazer politico institucional. É claro que a gente encontra barreiras, mas a gente consegue minimamente articular e avançar em muitos pontos", explica Francisca.
Seguindo a filosofia “sou, porque somos”, também conclamada por Marielle Franco durante a sua trajetória, as parlamentares pautam projetos juntas, que englobam a inserção de jovens no mercado de trabalho, atendimento de vítimas de violência contra a mulher, cotas de emprego para população trans, recursos financeiros para vítimas da atuação violenta do estado, programa de prevenção ao suicídio dos policiais, entre outros.
"Eu não posso me refutar de trazer aqui dentro do parlamento todo esse acumulo, toda essa potencia que as favelas do nosso estado tem e que são renegadas apenas à violência e apenas ao ódio. Então aqui também a gente construiu um mandato muito ativo e participativo na casa e tem proposições que o governador não tem como não sancionar", ressalta Monteiro.
Confira em vídeo a reportagem do Brasil de Fato
Atuação nas ruas
Além da atividade parlamentar, o legado de Marielle também permanece vivo nas ruas. Em Valinhos, interior de São Paulo, quando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocupou uma área improdutiva da região em abril de 2018, um mês após seu assassinato, e nomeou de Acampamento Marielle Vive.
“A Marielle atuava principalmente na cidade, na periferia do Rio de Janeiro, mas ela dedicou a sua vida a defender os trabalhadores e trabalhadoras injustiçados. A gente se reconhece nela nesse momento por essa mesma compreensão em relação à necessidade de uma transformação social a dedicar a vida para essa mudança”, explica a coordenadora estadual do MST, Tassi Barreto, sobre a escolha do nome.
A militante pontua que Marielle é uma inspiração em vários aspectos para o movimento e que há um reconhecimento também na dimensão de mulher lutadora que rompe muitas dificuldades para poder estudar, se formar e poder ser mãe, uma mulher que “brincava, que amava, que sorria e que lutava”, nas palavras de Barreto.
Nesse sentido, o encontro da luta urbana de Marielle com a luta do campo ganhou outra ponte quando as mulheres do acampamento se reuniram no coletivo As Marielles, com o objetivo de se fortalecer contra a violência doméstica e promover a geração de renda como forma de autonomia, autoestima e resistência das mulheres.
Atualmente são cerca de 30 mulheres que fazem parte do coletivo e que formam uma pequena cooperativa. A partir do saber de cada uma, elas realizam oficinas e confeccionam produtos comercializados em feiras e eventos.
“A gente diz que nós somos as Marielles, porque a identidade enquanto acampamento Marielle e a força que traz essa companheira nos dá garra todos os dias para seguir, mesmo com todas as dificuldades”, afirma Barrreto.
Na favela do Borel, Rio de Janeiro, Blenda Paulino se refere à mesma inspiração de Marielle, “a imagem e a força dela que faz, por exemplo, eu levantar todo dia para lutar e acreditar”. A estudante de biblioteconomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de 21 anos, se uniu a outros jovens da comunidade para transformar a dor da perda da vereadora em motor para outras colheitas do seu legado.
“A gente sentiu uma inquietação muito grande, como faríamos com a tristeza que estávamos sentindo e como a gente se moveria dentro do território. Então começamos a nos organizar e estruturar nas lajes para discutir o que seria a política para cada um", conta Paulino.
Dessa organização surgiu o projeto Brota na Laje - Juventude de Favela, hoje com dois anos de atuação. O projeto cresceu e, além da formação política em torno dos direitos das comunidades, o coletivo oferece cursinho pré-vestibular para mais de 100 adolescentes das favelas da Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro.
O objetivo é contribuir com sonhos de outros jovens por meio da educação e compartilhar a ferramenta de transformação que Paulino e os amigos encontraram ao serem os primeiros das suas famílias a “ocuparem” a universidade.
“Foi uma forma mesmo de continuar dando voz à memória dela e continuar as lutas, que eram tão importantes que me fizeram votar nela. O legado mesmo somos nós, os que já estão e os que estão vindo. É perpetuar mesmo a luta que a gente se faz presente para que outros também possam estar nesses espaços”, aponta a estudante.
Paulino se reconheceu na luta política da Marielle para encontrar seu lugar e começar a ocupar espaços políticos que a contemplassem como mulher preta.
“Hoje nos temos mulheres que coordenam o pré-vestibular do Broto na Laje, são mulheres pretas que estão de frente e estão dentro da sala de aula dando aula, é de uma importância política muito grande. A gente diz que as sementes são estas questões, são essas sementinhas que vão brotando e brotando e vão dando coisas bem boas”, exclama Paulino.
Mapas das Sementes
A formação de grupos, projetos, escolas inspirados na ativista brotaram tanto pelos cantos do país e do mundo que o Instituto Marielle Franco, criado pela família com o objetivo de buscar justiça sobre o caso e defender sua memória, lançou um Mapa dos Coletivos para identificar os frutos da sua luta e formar uma rede de apoio.
Já o projeto Florescer por Marielle, do Partido Socialista (PSOL), reuniu em um mapa placas produzidas com nome da vereadora, desde que tentaram destruir a primeira homenagem colocada na Praça da Cinelândia.
Na época candidato a deputado federal pelo partido que elegeu Jair Bolsonaro, Daniel Silveira (PSL) quebrou a homenagem durante um comício, com a presença do hoje governador Wilson Witzel (PSC). No dia 13 de março do ano passado, na véspera de completar um ano do assassinato da vereadora, Witzel recebeu os pais de Marille no Palácio da Guanabara para pedir desculpas pelo ocorrido.
Mais simbólico do que a desculpa do governador, em resposta a esse desrespeito foram produzidas e espalhadas pelo mundo novas placas. Mais de 18 mil estão identificadas no mapa disponível no portal Rua Marielle Franco.
Edição: Leandro Melito