Elas partilham o mesmo ultraje sofrido: os mandantes de todos os assassinatos não pagaram sua dívida
Voaram muitas balas antes daquelas que perseguiram Marielle na noite de 14 de março no Estácio, centro do Rio. Voaram muitas além das quatro que a encontraram e devassaram naquele fim escuro do verão carioca de 2018. Quando as balas continuam voando à procura de carne fresca para saciar sua fome, vale lembrar as que voaram antes devorando as vidas de mulheres que, a exemplo de Marielle, afrontaram a injustiça e desafiaram o poder da força bruta.
Voaram também quatro balas contra Ana Maria, entre elas a de misericórdia alojada na cabeça, disparada de cima para baixo, indício de execução. Ana teria sido vítima de troca de tiros com a polícia política. Mas seu cadáver chegou despido ao IML, de São Paulo. Estranho tiroteio que teria travado nua e no meio da rua. Mas, além dos quatro balaços, outras lesões marcavam a guerrilheira da Ação Libertadora Nacional, testemunhas de seu martírio. Pianista, estudante de belas artes, tinha 25 anos.
Voaram muitas balas contra Maria Regina. A primeira delas acertou sua perna direita. Foi, então, presa. Não era nenhum ferimento mortal. Porém, sua família não mais a veria. Em estado de choque, suas três irmãs se depararam com um corpo crivado de escoriações e inúmeras perfurações, inclusive a do rotineiro tiro na cabeça. Maria tinha 33 anos, dois filhos e era formada em filosofia.
Voaram mais de 100 – sim, 100 – balas que acossaram e alcançaram o corpo magro e pequeno de Suely no meio da floresta, às margens do Araguaia. Era 1974. Integrante do Destacamento B da guerrilha, fora cercada pelo exército. Mas Suely recusou-se a se render e revidou ao fogo com fogo. Seus restos mortais nunca foram entregues à família. Teriam sido queimados. Suely tinha 25 anos e cursava letras na USP, dedicando-se às línguas portuguesa, alemã e japonesa.
Voaram balas contra Marilene entre elas a que a matou, aninhada no seu pulmão direito. Mas, antes, ela fez voar a bala que mataria o comandante da operação que a emboscou. A fúria dos militares foi tremenda contra ela e seu companheiro, Mário.
Ele morreu ali mesmo e Marilene, ferida, foi carregada para o suplício, onde recebeu o disparo que a vitimou. Índia, seu codinome, estudava psicologia. Seu percurso de vida era similar ao da maioria das mulheres que foram à luta armada: militância no movimento estudantil para, após o AI-5, sem saída, submergir na clandestinidade.
Voaram balas contra Dina depois de presa. Geóloga, era uma das comandantes da guerrilha do Araguaia. Embora, segundo testemunhos, estivesse grávida, foi torturada durante duas semanas. Seu fim aconteceu no meio da floresta. Perguntou ao carrasco se iria matá-la. Diante da confirmação, pediu para morrer de frente. Tinha 29 anos. Seu corpo nunca foi encontrado.
Voaram mais de 40 balas no encalço de Lúcia. Não fazia muito, descalçara as botas e fora molhar os pés num regato na selva. Ao voltar, não encontrou as botas. Estavam com a patrulha. Acuada, sacou o revólver e acertou dois oficiais. No chão, ferida, ouviu a pergunta e retrucou com uma resposta célebre:
-- Qual é o seu nome?
-- Guerrilheira não tem nome, seu filho da p*! Eu luto pela liberdade!
De família pobre, Lúcia fora operária. Com o salário bancara a ida à universidade. Interromperia os estudos no 4º ano de medicina para ser guerrilheira e parteira na selva. Tinha 29 anos.
São mulheres e histórias de outro tempo, de outros métodos, de outras opções. Mas elas e Marielle partilham o mesmo ultraje sofrido: os mandantes de todos os assassinatos não pagaram sua dívida. Partilham também as balas. Que continuam voando e perseguindo as mulheres que se rebelam contra um destino, um país e um mundo que as esmaga e humilha.
Edição: Leandro Melito