“Você não trabalha para a gente, você trabalha com a gente”. Essa é uma das frases ditas pelo empregador ao contratar Ricky Turner, o pai da família protagonista do filme “Você não estava aqui”, que resume a mensagem principal passada no novo filme de Ken Loach. Ao longo da trama, vemos que a parceria não se concretiza e fica só na instância da promessa enunciada. As consequências que se desenrolam para Ricky (interpretado por Kris Hitchen) a partir daí estão muito mais próximas do cotidiano dos trabalhadores do que de personagens do mundo cinematográfico. Talvez essa seja a chave para entender porque o cineasta inglês é tão aclamado atualmente. Loach mostra o que parece óbvio mas poucos se aventuram a explicitar.
Em poucas palavras (e sem muito spoiler) o filme trata da difícil e exaustiva rotina de uma família de trabalhadores do nosso tempo: um pai entregador autônomo de uma plataforma de serviços de entrega, uma mãe cuidadora de idosos de uma empresa terceirizada e seus dois filhos adolescentes.
Muitos já destacaram o filme como um retrato da “uberização das relações de trabalho”. A expressão, em alta na mídia e entre sociólogos, nada mais é que um novo nome para uma já conhecida realidade: a exploração do trabalho. A novidade não está no nome mas na maneira como a exploração se consolida - através da dominação do tempo de trabalho permitida pela tecnologia. Dessa maneira, há um aprofundamento da exploração.
Essa realidade se agrava se colocada como responsabilidade do indivíduo. No discurso do empregador, “empreender” é uma escolha particular do trabalhador. No entanto, como se sabe, uma escolha não pode ser caracterizada assim quando não se tem outra opção. O que acontece com Ricky nas telonas é uma tendência mundial. O filme de Loach se passa na Inglaterra, mas poderia ser no Brasil. De acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 11,9 milhões de pessoas estão desempregadas no país.
O levantamento de janeiro deste ano mostra ainda que entre os trabalhadores ocupados, houve queda na informalidade, porque cresceu o número daqueles que “trabalham por conta própria” ou tem seu próprio CNPJ. Na comparação anual, o crescimento foi de 10,6% nesta modalidade. Esses são principalmente os que estão se dedicando a serem autônomos nos serviços de delivery, assim como Ricky. São motoristas do Uber e 99, são entregadores do UberEats, iFood e Rappi, ou transportadores de encomendas das gigantes Amazon e Americanas. Todos que trabalham na ponta de uma cadeia que mantém a mordomia dos serviços oferecidos online “na facilidade de um clique”.
Uma outra questão que o filme mostra, mas que não foi dada muita atenção nas exaustivas críticas, é que a esposa de Ricky, Abby (vivida por Debbie Honeywood), também é uma trabalhadora precarizada. A precarização de Abby não é tão debatida porque está estabelecida em um formato há muito tempo conhecido na Europa e há pouco regularizado no Brasil: a terceirização.
Há dois anos, sob o governo de Michel Temer (MDB), uma reforma trabalhista foi aprovada com o argumento de que era necessário acabar com direitos dos trabalhadores para que houvesse aumento dos postos de trabalho. Até hoje a proposta não chegou nem perto de resolver o problema do desemprego no país. Essa reforma foi responsável por regulamentar os serviços terceirizados. Com menos direitos trabalhistas, menos fiscalização – Bolsonaro extinguiu o Ministério do Trabalho – e mais “flexibilidade” nas relações, aumentaram o uso e a rotatividade de empresas de terceirização, o que precariza ainda mais os serviços. Os terceirizados se tornaram trabalhadores mais descartáveis.
No filme, Ricky e Abby têm as relações sociais e familiares completamente mudadas pela super exploração que passa em seus empregos. A falta de tempo, disposição e atenção geram graves impactos na estrutura familiar porque o trabalho não faz parte de uma esfera isolada e, sim, de toda a vida social. Mas enquanto são absorvidos pelo trabalho, os dois se atomizam e não se dão conta de que vivem em uma atmosfera comum a grande parte dos trabalhadores: a exploração.
Ricky e Abby são exemplos cinematográficos dos trabalhadores, delineados como “classe trabalhadora”, pelos movimentos sociais, partidos e organizações de esquerda. Mas eles não se denominam dessa forma e, sim, como empreendedores ou autônomos. Esse é um dos equívocos que pode explicar a falta de diálogo entre esses movimentos e os trabalhadores, justamente a dificuldade de pensar essa categoria em suas particularidades e transformações, de modo processual, como destaca Edward Thompson (1987). Para o historiador, o caráter processual das classes sociais pode ter distintas configurações ao longo de toda uma trajetória histórica.
Partindo desse entendimento, não faz sentido afirmar que a “classe trabalhadora” é um todo estático e parado no tempo. No caminho apresentado por Thompson, a empiria se destaca como chave: é preciso olhar contextos e histórias particulares para delinear como estão constituídas as classes sociais. É preciso olhar para histórias reais e identificar as experiências de Ricky e Abby reais.
*Editora do Brasil de Fato no Rio de Janeiro e doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Edição: Eduardo Miranda