Se nos últimos anos a onda feminista tomou conta das zonas urbanas, com as mulheres demarcando fortemente seus posicionamentos nos mais distintos espaços de convivência política e social, no meio rural, as camponesas também não se furtam à luta.
Espaço de intensa vocalização de demandas políticas, o campo é hoje palco de uma luta feminista à parte, que não silencia diante das demandas das mulheres da cidade, mas se soma a elas ao mesmo tempo em que tece uma caminhada própria, ancorada nas suas singularidades de vida e de luta. Foi a partir desse entendimento que o Brasil passou a lidar, na história recente, com o chamado “feminismo camponês popular”, um dos temas que estão em destaque no 1º Encontro Nacional das Mulheres sem Terra.
“É camponês porque ele atinge e chega na vida das mulheres camponesas, porque o feminismo, de maneira geral, ainda está muito acadêmico, embora o feminismo de qualquer tipo seja pra liberdade das mulheres. As camponesas têm uma especificidade de trabalhar na lavoura, de fazer a luta. É um outro jeito de vida e ele [feminismo camponês popular] é construído dia a dia, em cada momento que as nossas mulheres estão fazendo a luta”, explica Rosmeri Witcel, da coordenação pedagógica da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), acrescentando que essa luta se dá mais diretamente por meio da ação.
“A gente é muito cobrado sobre onde que tem escrito o que é o feminismo camponês. Não existe, porque estamos construindo ele na prática. Essa é a diferença. A gente entende que, se ele é popular, ele não pode ser do debate teórico, onde as mulheres da classe trabalhadora ainda não estão na sua totalidade”, sublinha a sem-terra Lourdes Vicente, que leciona pedagogia no Instituto Federal do Ceará (IFCE).
Rosmeri Witcel pontua que o movimento busca também incluir, nos debates sobre igualdade de gênero, os diferentes segmentos de mulheres rurais, como indígenas, quilombolas, além das próprias sem-terra, entre outras. As militantes entendem que, vivendo no campo, essas mulheres precisam se debruçar sobre suas particularidades.
“Elas vivem de maneira mais isolada. É mais fácil acontecer uma violência e ela ficar mais invisibilizada, por exemplo, inclusive nas áreas onde têm sua casa”, exemplifica.
Histórico
O conceito de feminismo camponês popular tem seu embrião nos idos de 2007, quando o Congresso do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) recebeu, entre os participantes, um percentual de 42% de mulheres, algo inédito até então.
Ali, uma mística que reuniu mais de 2 mil camponesas emocionou as sem-terra e ajudou a oxigenar os sonhos das mulheres da roça, que passaram a discutir com mais força os rumos das mobilizações que faziam. A partir disso, surgiu a necessidade de se construir uma luta mais especificamente voltada para a realidade rural.
“É que, muitas vezes, chega no campo um projeto de desenvolvimento que as mulheres não pediram, então, isso é o que chamamos de ‘vulnerabilização’, porque mudam as relações de trabalho e a gente perde a terra, passando a ser funcionário de alguém que vai ser o novo dono dela. Historicamente, a gente sempre pensava contra esse modelo de desenvolvimento, mas às vezes não fazia um link com a realidade local”, conta a professora do IFCE.
Agronegócio e capitalismo
Ela acrescenta que o Congresso do MST de 2005 possibilitou um amadurecimento cada dia maior dessa ideia, a partir da qual as mulheres do campo intensificaram a luta contra o avanço do agronegócio, tido como o principal adversário político dos agricultores familiares por ser associado à grilagem de terras, à contaminação do meio ambiente pelos agrotóxicos e à violência no campo. A ofensiva vitima indígenas, sem-terra, quilombolas, ribeirinhos e comunidades rurais em geral.
Diante da necessidade de intensificar o combate a essas práticas, a sem-terra Lourdes Vicente afirma que as mulheres do MST entendem que a batalha a ser travada é principalmente com o sistema que dá fundamento a todas essas opressões. “É basicamente uma luta contra o capitalismo, que ataca principalmente as mulheres. Não podemos fugir disso”, completa.
Popularização
Foi com base nesse entendimento que a luta feminista ampliou seu guarda-chuva, passando a convocar e abrigar um número maior de mulheres do campo, na tentativa de capilarizar e massificar o movimento. Para isso, as militantes camponesas investiram, especialmente na última década, em diferentes ações, como marchas, protestos, ocupações, além de terem buscado uma maior inclusão das mulheres nos espaços de decisão política.
“Na medida em que elas vão participando da luta, adquirindo uma consciência de classe e vão entendendo o que é essa luta, elas compreendem que nós vivemos numa sociedade capitalista e patriarcal e que o campo é extremamente violentado a cada momento por isso. A partir daí, você vai potencializando a participação delas no movimento”, afirma Itelvina Maria Maziolio, dirigente do MST de Mato Grosso.
No mesmo embalo do avanço da luta contra o agronegócio e as políticas capitalistas, veio também a ampliação da batalha pela reforma agrária popular. A pauta passou a contagiar e inspirar aquelas que tiveram a oportunidade de conhecer as ideias propostas pelas lideranças feministas do campo, como é o caso da agricultora Joana Silva.
Ela veio do Assentamento Abril Vermelho, em Santa Bárbara (PA), para se juntar às 3.500 militantes que se reúnem estes dias em Brasília no encontro nacional. A camponesa conta que a união das mulheres em torno dessa pauta é o incentivo que a fez atravessar meio Brasil para prestigiar o evento na capital federal.
“Por isso que aqui tem mais de 3 mil mulheres, por isso que nós estamos aqui. Eu já estou com 65 anos e não abro mão, estou na luta de tudo, aqui e na roça. Eu acho que é [uma questão de] lutarmos, unidas, e não desistirmos, porque temos que mostrar que mulher também tem vez, também tem coragem de trabalhar.”
Edição: Cris Rodrigues