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PIB não reage: quem poderia imaginar?

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Guedes sacou o número aleatório de 15 semanas para “melhorar a economia”, prazo que provavelmente se refere ao ultimato recebido de Bolsonaro - EVARISTO SA / AFP
Essa crise na verdade é um projeto, e o governo segue empenhado em agravar a desigualdade social

O coronavírus encontrou no Brasil uma economia combalida pela incompetência de Paulo Guedes e o governo acredita que matar o paciente seja a melhor forma de enfrentar a doença. Falamos sobre o pibinho, dólar alto, mas também sobre mais ataques ao Estado e às pessoas. Vamos para a octogésima edição do Ponto.

1. Toca o berrante, seu moço. No país da piada pronta, coube ao cantor sertanejo Sérgio Reis convocar o gado, quer dizer, os apoiadores de Bolsonaro para as manifestações do próximo dia 15, que têm como alvo o Congresso.

Na vida real, o governo lançou mão do tão combatido “toma lá dá cá” para chegar a um acordo sobre o Orçamento de 2020. Na quarta (4), o Congresso manteve o veto de Bolsonaro sobre o destino de R$ 30,1 bilhões que ficariam com o relator Domingo Neto (PSD-CE).

Como parte do acordo, o Executivo enviou três projetos de lei para regulamentar os valores de execução do governo e aqueles cuja indicação seriam responsabilidade do relator. Pelo entendimento, dos R$ 30,1 bilhões em emendas de relator, aproximadamente a metade ficará a cargo do governo.

Se por um lado Bolsonaro manteve o orçamento sob controle da União, por outro pode ter tido uma vitória de Pirro. Antes do desfecho, Alon Feuerwerker já previa que o Congresso chegaria a um acordo, ao mesmo tempo em que deixaria o governo sem poder culpá-lo pelo fracasso da economia.

De quebra, a convocação para os bolsonaristas irem às ruas acabou provocando a oposição a fazer o mesmo e deu uma mãozinha na sempre difícil unidade entre os partidos. As manifestações das mulheres deste 8 de março abrem a temporada de atos contra o governo. Fica a dúvida do que serão as manifestações do dia 15. Não há consenso entre bolsonaristas e lavajatistas nas redes.

A turma dos seguidores de Sérgio Moro convocou as manifestações em torno da prisão em segunda instância e não gostou de ver seu ato transformado em apoio ao governo. O fechamento do Congresso também divide parte dos manifestantes e, com o acordo em torno do orçamento, fica difícil sustentar estas bandeiras.

Além disso, Helena Chagas chama a atenção que, com o fracasso do Aliança pelo Brasil, Bolsonaro chegará candidato à reeleição em 2022 sem ter eleito um só prefeito por seu suposto novo partido este ano.

Pior que isso, não tem ainda candidatos fortes nas principais cidades do país, ainda que por outras legendas. Quanto aos rompantes golpistas, a aventura pode ter custado a credibilidade do general Heleno entre seus pares, mas quanto a Bolsonaro, mais uma vez, vai ficar tudo por isso mesmo.

Enquanto isso, neste final de semana, Bolsonaro fará sua quarta viagem do mandato aos EUA para encontrar novamente com Donald Trump e possivelmente anunciar acordos militares.

2. O fim está próximo. Como a China foi o motor do crescimento mundial nas últimas décadas, o coronavírus teve efeito cascata sobre a economia global. A OCDE já reduziu a projeção da taxa de crescimento da economia mundial para 2020 para apenas 2,4%.

Nos Estados Unidos, o Banco Central antecipou em duas semanas o corte da taxa de juros. Se os efeitos foram fortes nas economias centrais, imagine num país periférico e dependente. O corte dos juros nos EUA deve aumentar ainda mais a alta do dólar e, portanto, a desvalorização do real.

Além disso, a indústria nacional já sente a falta de componentes importados da China e o preço dos commodities deve ter quedas. Com isso, a fuga dos investidores da bolsa brasileira já se aproxima dos valores da crise de 2008. Se as previsões para economia brasileira estavam sendo revistas semana a semana, com o coronavírus elas desceram a ladeira.

Os analistas do mercado que previam crescimento de 2,5% para o Brasil sob gestão Bolsonaro-Guedes, agora admitem que foram “exageradamente otimistas” e que o crescimento não deve passar de 1,5%. O PIB de 2019, divulgado na quarta (4) pelo IBGE, decepcionou e cresceu apenas 1,1%, reforçando a ideia de que os economistas liberais precisam começar a ser responsabilizados pelas chantagens, travestidas de previsões, de que o crescimento viria com o desmonte do Estado.

O resultado representa uma desaceleração em relação a 2018. Chama atenção a baixa participação da indústria na composição do PIB e o fato de que foi o consumo das famílias o principal motor do crescimento de 1,1%, ou seja, medidas paliativas como a liberação do FGTS salvaram de um fiasco ainda maior.

Para tentar disfarçar o vexame, mais uma vez o governo usou o malabarismo conceitual do PIB privado x PIB público, separação que não faz sentido. Neste contexto, não é a toa que o até então superministro Paulo Guedes  tenha chamado a turma do MBL e do Vem pra Rua para pedir apoio para as reformas no Congresso.

Guedes sacou o número aleatório de 15 semanas para “melhorar a economia”, prazo que provavelmente se refere ao ultimato recebido de Bolsonaro. E em meio a uma crise econômica global, com descrédito do mercado e diante do precipício, o que faz o presidente da República? Coloca um humorista para substituí-lo e responder às questões econômicas dos jornalistas que cobrem o planalto.

3. Sinais da crise. Se o crescimento do PIB em 2020 é motivo de controvérsia entre analistas e malabarismos da equipe econômica do governo, na vida miúda das gentes há sinais, fortes sinais, de que a crise econômica segue afetando a vida dos mais pobres, com cruel contribuição do atual governo.

Num cenário em que a renda dos mais pobres caiu drasticamente entre 2014 e 2018, o congelamento de novas entradas no Bolsa Família, praticado pelo governo Bolsonaro desde maio de 2019, ganha contornos cruéis e dramáticos.

Como explica a ex-ministra Tereza Campello, a fila de cerca de 1,5 milhão de famílias (ou cinco milhões de pessoas) é de famílias habilitadas mas que não recebem o benefício, e a tendência é que a fila aumente mais, já que o orçamento de 2020 é menor.

Vale lembrar que, dentro deste orçamento, vai ter que caber o chamado 13º do Bolsa Família, cuja MP foi aprovada em comissão do Senado nesta semana, o que pode inviabilizar ainda mais a entrada de novos beneficiários do programa, agravando problema como o registrado em reportagem do Globo Rural sobre agricultores familiares do Maranhão que perderam o benefício.

Por algum motivo, o governo priorizou os estados do Sul e do Sudeste na concessão de novos benefícios em janeiro, em detrimento da região Nordeste, que concentra 36,8% das famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza na fila de espera do Bolsa Família.

O Nordeste recebeu apenas 3% dos novos benefícios enquanto Sul e Sudeste responderam por 75% das novas concessões. A opção preferencial CONTRA os pobres deste governo tem sido trágica também em outras frentes. A fila é grande também para a concessão do benefício para idosos e pessoas com deficiência de baixa renda no INSS, o que afeta particularmente as mães de filhos de crianças vítimas do zika.

Já a mortalidade de bebês indígenas voltou a crescer em 2019, exatamente após a saída dos médicos cubanos, retornando a patamares anteriores à implantação dos Mais Médicos. Entre janeiro e setembro de 2019, morreram 530 bebês indígenas com até um ano de idade, alta de 12% em relação ao mesmo período de 2018.

Como já sabemos, essa crise na verdade é um projeto, e o governo segue empenhado em agravar a desigualdade social no Brasil: deve ser regulamentada nas próximas semanas a taxação do seguro-desemprego e começou a andar a MP da carteira de trabalho verde e amarelo, que deve impor ao país uma renúncia fiscal de cerca de R$ 10,6 bilhões ao longo de cinco anos às custas de mais retirada de direitos dos trabalhadores. Urge um programa de esquerda que responda a essa tragédia social.

4. Estado, pra quê te quero? Depois de entregar todas as reformas pedidas pelo mercado e ver o PIB não crescer como anunciado pelos cabeças de planilha, em razão também da falta de investimento privado, o presidente da Câmara constatou o óbvio: não vai haver retomada da economia sem a participação do Estado.

Até o Secretário do Tesouro nacional, subordinado a Paulo Guedes, chegou a esta conclusão. A questão é que, neste ritmo, não vai sobrar mais Estado algum. Rodrigo Maia está empenhado em ele mesmo aprovar uma versão menor da próxima reforma, a administrativa, caso o governo atrase o envio do projeto.

O texto já estaria pronto, mas o Planalto titubeia em enviar e diz que espera o “melhor momento”. Enquanto não apresenta o projeto da reforma administrativa, que muda a carreira dos servidores públicos, acaba com a estabilidade e reduz salários, o governo editou uma Medida Provisória que amplia a possibilidade de contratações temporárias no serviço público, antecipando um ponto da reforma administrativa.

A MP pegaria carona no problema da fila do INSS para se tornar um “embrião” de uma nova estrutura do serviço público, sinalizando um modelo do funcionalismo com poucas carreiras para atividades que são específicas.

A propósito, respondendo a acusação de Paulo Guedes de que os servidores seriam parasitas, a revista Piauí constatou que metade dos servidores ganha menos de R$ 2,7 mil por mês. Em defesa do serviço público, contra a redução de jornada com redução salarial, contra a reforma administrativa e denunciando os impactos da reforma da Previdência, as entidades de servidores públicos se mobilizam para uma paralisação nacional no dia 18.

5. Balbúrdia no Fundeb. Um bom exemplo do que Paulo Guedes e companhia entendem como projeto de país e qual a visão de Estado para isso é o debate em torno do Fundeb - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação.

O fundo expira neste ano e há quase uma unanimidade em torno de sua continuidade no Congresso, pois através dele a União complementa os recursos para educação em municípios e Estados que não arrecadam o suficiente para garantir o investimento mínimo constitucional nesta área.

Desta forma é dele que provêm 50% dos recursos para educação de milhares de municípios. Uma proposta de emenda constitucional em tramitação no Congresso propõe que o fundo seja permanente e que a contribuição da União aumente escalonadamente, porém condicionando a índices de desempenho e, mais grave, usando outra fonte de recursos do MEC, o salário-educação, proveniente de fontes empresariais.

A mudança significaria, na prática, o esvaziamento de outros programas, como a alimentação e o transporte escolar. A proposta também encobre uma gambiarra nos números, segundo os cálculos da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação: o uso do salário-educação fará com que a complementação real da União ao Fundeb seja de 15% e não 20%.

6. Seja na terra, seja no mar. Na semana passada mostramos que o superintendente do Ibama no Pará, um policial militar paulista aposentado, colocado no posto pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, emitiu licenças de exportação retroativas, algo que não está previsto na lei, em favor de uma empresa, legalizando o envio irregular de madeira da Amazônia ao exterior.

Agora, a agência Reuters mostra que o crime é bem mais ampla: no Pará, mais da metade das cerca de três mil cargas registradas no ano passado, que saíram de um porto contendo um volume estimado em 54 mil metros cúbicos de madeira, não tinha autorização.

Enquanto Bolsonaro faz piada com jornalistas e os militares do governo brincam de autogolpe, o projeto de exploração da Amazônia segue a pleno vapor: um levantamento da agência Pública mostra que os processos de exploração minerária em terras indígenas da Amazônia cresceram 91% desde o início do governo Bolsonaro, a primeira vez desde 2013 que os requerimentos registraram aumento. Mas nenhum servidor do Ibama irá comentar o assunto com a imprensa: uma portaria da superintendência proibiu o contato dos subordinados com jornalistas.

Além de tudo isso, soubemos por meio de um vídeo do senador Flávio Bolsonaro ao lado do presidente da Embratur, que o governo quer liberar a volta dos grandes cruzeiros ao arquipélago de Fernando de Noronha, um dos ecossistemas mais sensíveis de biodiversidade brasileira e que já está saturado de turistas: de acordo com a legislação, Fernando de Noronha tem capacidade para receber 85 mil pessoas por ano, sendo que no ano passado 114 mil pessoas visitaram o lugar. Mais uma vez, está cabendo a um governo nordestino manifestar alguma resistência.  

7. Rastro de pólvora. O governador cearense Camilo Santana (PT) acabou vencendo a queda de braço com os policiais amotinados no Estado. Além do fim da greve, Camilo conseguiu impor medidas duras aos policiais que protagonizaram ameaças nas ruas e o episódio que culminou com o ferimento do senador Cid Gomes.

Além disso, viu os governadores do Nordeste prometerem apoio caso Bolsonaro retirasse a Força Nacional. Bolsonaro, aliás, disfarçou, mas não escondeu a simpatia pela paralisação de um setor que se confunde com a sua base social.

Prova disso é a "normalidade" com que o chefe da Força Nacional, enviada para garantir a segurança no Estado, elogiou e estimulou os amotinados no final do motim, na prática, estimulando outras ações de PMs como estas.

O coronel Aginaldo de Oliveira é casado com a deputada bolsonarista Carla Zambelli e tem Sérgio Moro como padrinho de casamento. O gesto foi mal recebido entre os militares do governo, com aversão a qualquer tipo de greve e em especial temerosos de que o exército seja chamado para fazer policiamento caso as greves de PMs se espalhem. A hipótese é delicada: o descontentamento policial pode atingir inclusive estados ligados ao Bolsonarismo.  

8. Ponto Final. Nossas recomendações.

Sordidez de vilão de James Bond. Artigo do economista Rodrigo Zeidan sobre os efeitos nefastos de esvaziar o Bolsa Família, com uma série de estudos mostrando a importância do programa.

As brasileiras que sequenciaram o genoma do coronavírus. Conheça Ester Sabino, diretora do Instituto de Medicina Tropical (IMT) da USP, e Jaqueline Goes de Jesus, pós-doutoranda na Faculdade de Medicina da USP, as cientistas que sequenciaram o coronavírus em 48 horas.

Eles prometeram jamais receber dinheiro do governo. Reportagem do The Intercept sobre os milicianos virtuais do Bolsonarismo que prometeram não receber recursos públicos, mas receberam de muitas formas.

O "investimento" federal no Fundeb vai sair das barrigas famintas dos alunos.  Entrevista especial com Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, para o Instituto Humanitas, sobre como a alimentação escolar ficará sem recursos com o fim do Fundeb.

O que a Índia de Modi diz sobre o Brasil de Bolsonaro. Artigo de Rosana Pinheiro Machado sobre o que podemos aprender com o autoritarismo do governo indiano como espelho do futuro para o Brasil.

"Se não houver acordo entre as forças do campo democrático, Bolsonaro está reeleito". O filósofo Marcos Nobre dá longa entrevista à Agência Pública, afirmando que o projeto de Bolsonaro é destruir o sistema democrático estabelecido pela Constituição de 88, ainda sem um projeto claro do que pode fazer depois. Além disso, defende que o campo democrático faça uma aliança eleitoral em 2022 a fim de subverter a lógica dos três terços que, em sua opinião, levará Bolsonaro à reeleição.

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Edição: Leandro Melito