Mesmo vencendo as eleições, fatores estruturais impediriam a repetição do modelo
Recebi inúmeros comentários sobre o artigo anterior, no qual questionava se ainda é possível construir uma aliança política entre as forças populares e uma fração burguesa para retomar o neodesenvolvimentismo.
Alguns sustentaram que afirmar a impossibilidade de se reeditar o neodesenvolvimentismo é precipitado. Afinal, como reconheci no próprio artigo, o Estado brasileiro é forte e conta com muitas estruturas que não serão facilmente desconstruídas.
No entanto, a luta política exige definições prévias. A resposta a essa questão tem implicações táticas e até mesmo estratégicas. Em última instância, ela define o caráter das alianças políticas que as forças populares buscam construir e, consequentemente, o programa necessário.
Portanto, não podemos fugir da questão, sob o risco de que a própria inércia da repetição do passado nos leve a retomar um processo para o qual já não existam possibilidades históricas.
É inquestionável que o programa político do bloco no poder, representado pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido), investe suas energias em desmontar os mecanismos econômicos como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDES) e os demais bancos públicos, reforçar a blindagem orçamentária, concluir a privatização de setores estratégicos e conferir autonomia ao Banco Central. Trata-se de um processo ainda em curso e realmente não sabemos se conseguirão concluí-lo.
O mais relevante desmonte no aparato estatal que possibilitou o neodesenvolvimentismo será a autonomia do Banco Central, cujo projeto avança no Senado, mas ainda não foi aprovado.
Em tese, tais mecanismos poderiam ser revertidos havendo uma futura correlação de forças suficientemente favorável a um projeto desejoso de reeditar o neodesenvolvimentismo.
Conforme indaguei no artigo anterior, na hipótese, por ora bastante remota, das forças populares contarem com condições políticas tão favoráveis, seu programa deveria se limitar a retomar o neodesenvolvimentismo em aliança com frações burguesas?
De qualquer forma, admitamos, apenas como argumento, a possibilidade de que uma vitória eleitoral pudesse reverter o desmonte dos mecanismos estatais, retomando o cenário anterior.
Ainda assim, não seria possível. Existem outros fatores estruturais, cuja complexa reversão exige um tempo histórico bem mais expressivo. Dentre eles, a desindustrialização é o principal. O conjunto de fatores que colaboraram para essa tendência foi observado em toda a América Latina, mas o Brasil, por seu tamanho e relevância, é o mais significativo caso de desmantelamento precoce da indústria. Sem o impulso da substituição das importações e o restante das medidas desenvolvimentistas que foram decisivas até o início dos anos 80, o processo de desmonte industrial segue acelerado, mesmo com as medidas pontuais de estímulo tentadas durante os governos petistas.
Os esforços do neodesenvolvimentismo para reverter a desindustrialização esbarraram num câmbio flutuante, taxa de juros escorchante, elevados juros da dívida pública. Em outras palavras, foram limitados pela blindagem jurídica construída ao longo da primeira ofensiva neoliberal (1994 – 2002).
Isso gerou consequências profundas. Sabemos que tecnologia, eficiência e produtividade não se obtêm a curto prazo.
A capacidade industrial é a mais importante fonte de inovação tecnológica. Não bastasse as consequências da abrupta desindustrialização, os ataques à Petrobras, com a venda de seus ativos, destroem o único polo em que ainda exercíamos um papel competitivo. Com isso, nosso progresso técnico encontra-se cada vez mais restrito a agricultura, pecuária e mineração.
Por sua vez, a tecnologia industrial para além de investimentos de longo prazo exige uma política de educação adequada, serviços de engenharia compatíveis, treinamento e capacitação da força de trabalho. Fatores que também vêm sendo intensamente desmontados desde o golpe de 2016.
Não bastasse tudo isso, lastimavelmente, os ataques do governo Bolsonaro também afetam profundamente a pesquisa, inviabilizando importantes polos da universidade pública.
O resultado é que nosso país acaba destinado a ser uma mera plataforma de valorização financeira, exportação de minérios e produtos derivados do agronegócio. Uma configuração que por si só, torna impotente o papel da grande burguesia interna e fortalece a hegemonia da burguesia associada ao capital financeiro internacional.
A conclusão é que mesmo detendo o controle da máquina administrativa com a vitória em eleições presidenciais, ainda que se admita a hipótese de conquistar uma maioria parlamentar, as forças populares enfrentariam desafios de natureza estrutural que inviabilizam a reedição da experiência neodesenvolvimentista por meio de uma aliança com uma fração burguesa.
Diante disso, cabe perguntar quais as reais possibilidades de prosseguir com um programa que tente atrair setores burgueses que já não poderão ser atraídos para uma aliança política?
Evidente que não se trata de desprezar as contradições no seio das frações burguesas. Elas seguem existindo e podem se ampliar ante o agravamento econômico internacional. Ter a capacidade de incidir nelas é parte da habilidade política necessária para um Projeto Popular.
Estamos diante de fenômenos políticos de natureza muito diferente. Uma coisa é saber incidir nas contradições no interior da burguesia, romper sua unidade, afastar a abalada burguesia interna do controle hegemônico da fração burguesa diretamente associada. Outra, bem distinta é apresentar a proposta de constituir um governo de aliança com frações burguesas como foi corretamente feito em 2002 e já não poderá ser reproduzido.
Tampouco se trata de uma concepção apriorística de negação de alianças com frações burguesas. A luta revolucionária no século XX é prodiga em exemplos que demonstram a importância de tais alianças, não só para a conquista do poder do Estado como para avançar na experiência de construção socialista.
O debate aqui suscitado é sobre a possibilidade de atrair frações burguesas, em especial a burguesia interna, por meio da conquista eleitoral do aparato administrativo nos moldes da experiência neodesenvolvimentista.
Tal questão é decisiva. Terá que ser respondida pelas forças de esquerda, mesmo sem ter necessariamente pesquisas que comprovem as hipóteses que estamos debatendo.
Enfrentamos uma derrota de natureza estratégica. Novos erros custarão muito para as forças de esquerda. A busca de adesão de massa a qualquer proposta política implica clareza de objetivos e de meios.
Edição: Rodrigo Chagas