Se há um setor com o qual Bolsonaro não precisa se preocupar, é o empresariado
Mais uma vez Bolsonaro flertou com a ditadura, mais uma vez “as instituições funcionaram” para contrapor os arroubos autoritários e podemos seguir a vida. Certo? Mais uma vez discutimos de por que não. Vamos lá.
1. Onde há fumaça, há fogo. O tensionamento permanente das instituições é o novo normal do Brasil bolsonarista. Mas há outras anormalidades em curso. A grande novidade é que a convocação das manifestações de 15 de março partiram das declarações do general Augusto Heleno, misto de mentor, tutor e braço direito de Bolsonaro desde a candidatura presidencial.
É bastante improvável que o orçamento impositivo, peça-chave do parlamentarismo branco que Rodrigo Maia (Democratas) criou para manter a agenda política sem o presidente, tenha incomodado o governo só agora. Também é estranho brigar com o Congresso às vésperas das reformas tributária e administrativa, quando o discurso sempre foi de que as reformas são necessárias para alavancar a moribunda economia.
Vamos lembrar que, há um ano, Bolsonaro fez exatamente a mesma coisa que está fazendo: convocou protestos contra os demais Poderes e depois recuou. Agora, já disse que o vídeo era de cunho pessoal (!) e também mentiu que o vídeo seria de 2015, sendo que contém imagens da facada? ocorrida em 2018. É possível que agora tenha se adiantado ao desastre econômico.
Mas é possível também que tenha usado os atos para medir a sua popularidade e sua capacidade de convocação, numa tentativa de demonstração de força perante o Congresso. Primeiro, da sua própria base que, como já percebemos, precisa estar em constante movimento e chamada para a ação, embora nem internamente eles se entendam.
Segundo, com os militares que super povoam o Planalto. Partindo de Heleno, o flerte cotidiano com a ditadura mede qual o grau de adesão dos militares na ativa para uma aventura com Bolsonaro, uma vez que as Forças Armadas já estão até a medula em comprometimento com o governo.
É verdade que há algum incômodo, explicitado pelo dissidente Santos Cruz, mas há também a simpatia de soldados e baixo oficialato, o silêncio da aeronaútica e, como chama atenção Igor Gielow: “se hoje há militares na ativa do governo, eles trabalham para sustentar politicamente Bolsonaro. Isso é um sinal à tropa. Como ficaria se, por exemplo, o PT voltasse ao poder encarnado em algum poste de Lula em 2022? Eles dariam continência e voltariam para o quartel sem chiar?”.
Enquanto isso, se há um setor com o qual Bolsonaro não precisa se preocupar, é o empresariado. Logo depois da convocação para os atos, já pulularam as mensagens de apoio e financiamento “aos atos espontâneos” em grupos de WhatsApp.
2. Agora vai? Se Bolsonaro repete um padrão a cada ameaça de golpe - morde e assopra - a oposição também repete seus ritos. Lá vêm as manifestações de choque com as declarações, e pela milésima vez ouvimos que desta vez passou dos limites.
Como lembra Alon Feuerwerker, botar “as ruas” na equação interessa mais à oposição do que ao governo, mas a oposição estava “entretida com as questiúnculas que cercam as eleições municipais, discutindo se em 2022 a frente deve ser ampla ou de esquerda, no máximo ataca o governo nas redes sociais”.
Porém, se no Congresso, a ideia era esperar para ver, fora dele, o tom subiu nos últimos dias. Originalmente marcado como um ato em defesa da Educação, as centrais sindicais e movimentos populares decidiram ampliar o conteúdo da manifestação chamada para o dia 18 de março.
O 8 de março, Dia Internacional de Luta das Mulheres, e o 14 de março, aniversário do assassinato de Marielle Franco, também incorporaram com mais força os protestos contra Bolsonaro na pauta.
Na Fórum, o jornalista Renato Rovai escreve que a esquerda deveria ir às ruas também para impedir os atos bolsonoristas do dia 15 e que a esquerda precisa incorporar os temas econômicos como bandeira de luta. “Trocar Bolsonaro e manter a política econômica não resolve os problemas dos setores populares. Isso tem de ficar claro desde já”, propõe.
Enquanto isso, embalados pela greve dos petroleiros, são os trabalhadores dos Correios que podem entrar em greve nos próximos dias, engrossando o caldo dos protestos contra o governo.
3. Coronavírus. O coronavírus esperou o Carnaval terminar para chegar ao Brasil. Na Quarta-Feira de Cinzas, o Ministério da Saúde confirmou o primeiro caso da doença no Brasil: um homem de 61 anos que passou duas semanas na Itália apresentou sintomas da doença e se encontra em isolamento domiciliar em São Paulo.
No mesmo dia, o Ministério informou que outros 20 casos suspeitos eram investigados no Brasil, número que já aumentou consideravelmente em razão de uma aceleração nas notificações. Entre os cenários possíveis, é mais provável que o Brasil tenha casos pontuais da doença, relacionados a pessoas oriundas de outros países.
De todo modo, o coronavírus mantém uma taxa de letalidade considerada baixa, matando duas a cada 100 pessoas infectadas - além disso, mais de 80% dos casos são leves. Mesmo assim, a notícia do primeiro caso confirmado no Brasil provocou na classe média brasileira o que ela tem de melhor: uma corrida para garantir o próprio abastecimento de máscaras e álcool em gel, num pânico até agora injustificado.
Diante do quadro, o governo decidiu antecipar a campanha de vacinação contra a gripe, numa tentativa de reduzir, por eliminação, as notificações por suspeita de coronavírus. Vale mais uma vez ressaltar a eficiência e a capilaridade do SUS para lidar com esse tipo de situação, mas também é importante lembrar que a Saúde deixou de receber em 2019 cerca de 9 bilhões de reais, pela regra do teto de gastos aprovada após o impeachment de 2016.
4. Não é gripe. Se o coronavírus já gera certo pânico entre a população, no mercado financeiro ele vem sendo usado como pretexto. Após a confirmação do primeiro caso no país, a Bovespa despencou sete pontos, supostamente acompanhando também a queda de outras bolsas internacionais.
Mas, na ponta do lápis, a bolsa brasileira despencou bem mais do que suas correspondentes internacionais, o que desperta a desconfiança de que não foi o vírus, mas um sentimento de que há uma bolha especulativa no mercado brasileiro. Em um único dia, as empresas perderam R$ 290,2 bilhões em valor de mercado, o montante equivale ao valor de mercado do Itaú Unibanco.
Na prática, com juros baixos os investidores migraram em peso para a bolsa, o que supervalorizou o preço das ações que, por sua vez, não correspondem ao desempenho real esperado pelas empresas com a economia brasileira.
Outra hipótese, não excludente e igualmente preocupante, é de que diante de uma estagnação internacional causada, aí sim, pelo coronavírus, os investidores procurem mercados mais seguros e menos instáveis que o brasileiro, o que leva à evasão e a outra disparada do dólar.
A bolsa não foi o único sinal preocupante na economia nesta semana carnavalesca. O número de saques do tesouro direto (R$3 bi) superou o número de investidores (R$2,05 bi), sendo que R$ 2,34 bilhões foram resgates antecipados.
Este é o terceiro mês consecutivo de saques destes títulos, um crescimento de 43%, o que pode ser um sinal de desconfiança com o governo ou simplesmente buscando investimentos mais lucrativos.
Seja qual for a explicação, são recursos a menos na caixa do Estado. Ninguém acredita muito na possibilidade de que o Brasil cresça perto dos 2% neste ano, tanto que o Bank of America rebaixou a previsão de crescimento do país de 2,2% para 1,9%, enquanto o JP Morgan diminuiu de 1,9% para 1,8%.
5. O pequeno Moro e o empoderamento das polícias. O estado do Ceará chegou a ter uma média de 24 homicídios por dia em meio ao motim de policiais militares por aumento salarial. Tudo sob controle, de acordo com o ministro Sérgio Moro, que esteve em Fortaleza durante o Carnaval e preferiu colocar panos quentes na situação, evitando condenar a ação dos policiais.
O número de homicídios teria sido reduzido com a presença do Exército, com a aplicação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), mas Bolsonaro declarou em sua tradicional live de quinta-feira (27) que vai tirar o Exército de Fortaleza, dizendo que o governador cearense se resolvesse com os policiais.
O sociólogo Ricardo Moura, pesquisador da UFC, afirma que por trás das questões salariais existe uma vontade no interior da corporação de desgastar o governo “comunista” de Camilo Santana. Como afirmamos na semana passada, fica claro que há um empoderamento dos policiais militares, alinhados ao bolsonarismo, na tentativa de enfraquecer os governadores que até então vinham representando alguma resistência ao governo federal.
A propósito, em Pernambuco conjuntos musicais afirmam que foram proibidos pela Polícia Militar de tocar uma música de Chico Science intitulada Banditismo por uma questão de classe durante o Carnaval. No Ceará, há relatos de que pessoas que criticaram o motim policial nas redes sociais passaram a receber ameaças de pessoas que possuíam suas informações pessoais. Enquanto afirma que a situação no Ceará está sob controle, Moro se dedica a requisitar abertura de inquérito contra uma banda de punk rock de Belém do Pará, por críticas a seu chefe.
6. Tragédias à vista. Um navio carregado com cerca de 300 mil toneladas de minério de ferro da Vale está encalhado e começou a afundar por causa de ao menos dois buracos em sua estrutura no Oceano Atlântico, a cerca de 100 quilômetros do litoral do Maranhão.
Na quinta (27), imagens de satélite já mostraram vazamento de óleo do navio, que estaria com cerca de quatro mil toneladas do combustível. A Marinha brasileira já instaurou um inquérito administrativo para apurar as causas do incidente.
Mas não esqueçamos: lá se vão seis meses do aparecimento das primeiras manchas de óleo no Nordeste e não há respostas sobre as causas. Mais uma possível tragédia ambiental a ser controlada por um governo que tem se mostrado propositadamente incompetente na área.
Na Amazônia, por exemplo, um policial militar aposentado do Estado de São Paulo foi nomeado superintendente do Ibama no Pará, sem nunca ter pisado na região antes, e já está passando por cima de normas internas do órgão para liberar cargas de madeira exportadas irregularmente.
Na ONU, o governo brasileiro será denunciado por risco elevado de genocídio de povos indígenas isolados e pelo desmonte de sua estrutura de Estado para combater o desmatamento. Já as entidades de defesa do meio ambiente estão em alerta com a possibilidade de avançarem no Congresso uma série de projetos anti-ambiente, incluindo a mineração em terras indígenas e a Lei de Licenciamento Ambiental.
7. Ponto Final. Nossas recomendações de leitura.
Exemplo de Bolsonaro não é Maduro, é Fujimori. O jornalista Bernardo Mello Franco lembra que, embora se compare Bolsonaro a Chávez, a inspiração do presidente brasileiro parece ser o ex-presidente do Peru, que promoveu um autogolpe em 1992.
Inspirado nos EUA, Bolsonaro adota tática de troll: testar limites para ganhar visibilidade, diz filósofo. Em entrevista para BBC, o filósofo Rodrigo Nunes (PUC-Rio) fala sobre como as pautas conservadoras mantêm o bolsonarismo fidelizado e ao mesmo tempo como a esquerda se encontra sem programa e radicalizada na identidade.
Quem ri com Bolsonaro. A Piauí traça o perfil de um empresário bolsonarista para descrever como se comportam os seguidores dedicados a perseguir adversários políticos nas redes sociais.
O programa econômico da esquerda brasileira. O pesquisador José Luiz Fiori faz um balanço da abordagem da esquerda latino-americana no século passado e a postura anti-estatal que parte da esquerda brasileira adotou depois da redemocratização.
Bolsonarista Nutella, por Esther Solano. Na TV Boitempo no Youtube, a pesquisadora explica como se comporta e como tentar dialogar com a ala menos radical e fidelizada do bolsonarismo.
Tiro, porrada e bomba? O que está por trás da melhoria nos indicadores de violência - Entrevista com Ivan Marques, consultor em segurança pública no podcast Jornalistas à Paisana.
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Edição: Leandro Melito