“Na ciranda me batizei e estou aqui com a ciranda no meio do mundo”, afirmou Lia de Itamaracá, um dos grandes símbolos da identidade e cultura brasileira, ao ser homenageada pelo bloco afro-feminino Ilú Obá de Min na abertura do carnaval de São Paulo (SP), na última sexta-feira (21).
Nas ruas do centro da capital paulista, o grupo, composto por 450 integrantes, cujo nome significa “mãos femininas que tocam tambor para o rei Xangô”, cantou e tocou para a maior representante da ciranda brasileira.
Os cantos da menina faceira da Ilha de Itamaracá, hoje com 76 anos, começaram ainda criança quando frequentava as rodas do Sargaço, Parque São Pedro, do Mestre Antônio Baracho e outros mestres da cultura popular.
“Todo meu sonho era cantar, eu achava bonito quem canta, quem dança. Eu dizia sempre assim, meu Deus, eu queria um dia ser uma cantora para cantar para muito público, muita gente, para eu sentir aquele povo todo, será que eu vou alcançar isso meu Deus?”, relembra Lia.
Não só alcançou, mas se tornou a Rainha da Ciranda e com sorriso aberto e brincadeiras recebeu o Brasil de Fato para contar algumas das histórias de como Maria Madalena Correia do Nascimento, seu nome de batismo, conseguiu superar inúmeros obstáculos e se transformar em Lia de Itamaracá, uma das grandes estrelas da cultura brasileira.
“Teca Calazans, uma pesquisadora de música e artista, esteve na Ilha de Itamaracá, em 1961 para 1962, ela me ouvindo cantar pediu para cantar uma música para ela. Uma dessas músicas que eu solfejei para ela, surgiu essa ‘Quem me deu foi, Lia’. Ela disse: ‘essa música é um amor, eu vou por letra nisso e será uma ciranda em sua homenagem’”, conta a mestra que, assim como muitas meninas negras, trabalhava com os sete irmãos e a mãe em um sítio de uma família rica na ilha situada na capital pernambucana.
Tempos depois, Lia e a comunidade de Itamaracá ouviram a música no rádio. A partir daí ela, com 20 anos, resolveu “assumir a responsabilidade”, como define, e levar a ciranda pelas terras pernambucanas e, depois, mundo afora.
A rainha da ciranda
A fama se espalhou e Lia, que alguns apenas conheciam como um folclore nordestino da música, lançou em 1977 o LP Lia de Itamaracá – A rainha da ciranda.
Mesmo depois de ganhar na época a capa da revista Veja com o título “A lendária Lia de Itamaracá, 33 anos, lança seu álbum”, o ritmo das coisas diminuíram pela falta de valorização e retorno financeiro do antigo produtor.
Com a parada durante os anos 1980 e 1990, Lia “lutou, lutou e lutou”, como ela mesmo disse, e buscou o sustento em outras formas de trabalho, enquanto cantava ciranda nas horas vagas.
No bar e restaurante Sargaço, localizado no bairro de Jaguaribe, próximo à sua morada, cozinhava durante o dia e, à noite, encantava o público com ciranda. Depois passou a trabalhar como merendeira em uma escola da região, mas sem deixar a paixão pela música.
“Não abandonei a ciranda de jeito nenhum, na escola eu dançava e cantava a ciranda com os meninos, não abandonei não, era o que eu queria fazer, gostava de fazer. Estava sempre na ativa”, afirma Lia.
O meu trabalho é mais reconhecido fora, no meu lugar, é a Deus dará. Eu tenho que sair para poder aproveitar o que Deus está me dando e a idade também que está chegando e daqui a pouco, Lia cadê?
A resiliência da brincante de ciranda deu frutos no final dos anos 1990, quando encontrou o produtor Beto Hees, parceiro de Lia há mais de duas décadas. Hoje ela vive um momento peculiar da carreira e lançou recentemente o álbum Ciranda sem fim (Natura Musical) - quarto álbum da discografia da cirandeira e o primeiro desde Ciranda de ritmos (2010) - , e uma biografia, “Lia de Itamaracá”, lançada em julho do ano passado em parceria com o jornalista conterrâneo Marcelo Henrique Andrade.
Referência e símbolo de luta para outras mulheres, Lia de Itamaracá é convidada há 10 anos para fazer a grande ciranda da Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia, que acontece na Paraíba e reúne todo dia 8 de março agricultoras do Nordeste para dar visibilidade ao papel das camponesas na agricultura e denunciar todas as formas de violência contra a mulher.
Entretanto, mesmo com o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, a mestra de ciranda sofre com falta de valorização e apoio no próprio governo pernambucano. “O meu trabalho é mais reconhecido fora, no meu lugar, é a Deus dará. Eu tenho que sair para poder aproveitar o que Deus está me dando e a idade também que está chegando e daqui a pouco, Lia cadê? Lia não fez nada, nem amostrou-se”, afirma ela ao contar, entristecida, que este ano não toca nas festividades do carnaval do estado, que não quis pagar um cachê combatível com seu show, que conta com uma equipe de pelo menos 10 pessoas.
A ciranda é muito bom, a ciranda é uma confraternização, é onde todo mundo dá-se as mãos, na maior satisfação, alegria
A reivindicação de Lia se estende a toda cultura popular local. “O que falta é apoio, que as festividades estão se fazendo, se plantando, mas não tem apoio. No Recife os governantes não chegam perto dos artistas, tem muitos mestres da cultura no Recife, tudo encostado, muitos já morrendo. Com tanta coisa boa, com tanto trabalho bonito, mas, infelizmente, ninguém chega perto, ninguém ajuda”.
Em tempos de retrocesso e intolerância, a mestra segue sua missão de disseminar a ciranda e suas formas de amor nas escolas da região, shows e no centro cultural que criou em Itamaracá, mas que segue sem fomento.
“A ciranda é muito bom, a ciranda é uma confraternização, é onde todo mundo dá-se as mãos, na maior satisfação, alegria. A ciranda não tem preconceito, dança branco, preto, criança, velhos, não tem preconceito. Caiu na roda, dança!”, brinca Lia, que tem consciência do símbolo e exemplo de luta que é, “Lia morre, mas fica a nota no mundo, o trabalho que Lia fez no mundo, já ficou”.
Edição: Rodrigo Chagas