Se em algum momento da história do Carnaval do Rio houve dúvidas sobre a influência e presença das religiões de matriz africana na festa, 2020 veio para derrubá-las. As três primeiras colocadas do grupo especial levaram à Sapucaí a força dos orixás do Candomblé, das entidades da Umbanda e o papel primordial que essas crenças têm na construção da identidade cultural brasileira.
O samba da Viradouro, grande vencedora do Carnaval, já começava com uma saudação a Oxum, orixá das águas doces. A composição foi protagonista de um dos momentos mais emocionantes dos desfiles na Sapucaí. Com pouquíssimo tempo de desfile, já era entoada pelo público, que abraçou as referências ao Candomblé.
Ora yê yê ô oxum! Seu dourado tem axé/ Faz o seu quilombo no Abaeté/ Quem lava a alma dessa gente veste ouro/ É Viradouro! É Viradouro!
Xangô ilumina a caminhada/ A falange está formada/ Um coral cheio de amor/ Kaô, o axé vem da Bahia/ Nessa negra cantoria/ Que Maria ensinou
O carro da comissão de frente trouxe a atleta Anna Giulia nadando em um grande aquário. Única negra na equipe de nado sincronizado da seleção brasileira, ela estava fantasia de sereia dourada, em alusão a Oxum. A mãe das águas doces esteve presente também nas roupas das guardiãs do primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeiras da escola, com um amarelo forte e coroas que lembravam as vestimentas dos orixás nos xirês do Candomblé.
No enredo, a escola homenageou As Ganhadeiras de Itapuã, mulheres que desde o fim do século 19, contam histórias de vida por meio de canções populares, enquanto trabalham nas ruas de Salvador. Hoje, as descendentes desse costume formam um grupo musical, que nasceu nos quintais de duas casas de Candomblé de capital baiana. A força do trabalho das mulheres, conduzidas por Oxum, garantiram à Viradouro o apoio do público na hora do desfile e a consistência do espetáculo chamou atenção dos jurados.
O Rei do Candomblé
O pai de santo que criou polêmica no Carnaval de 1956 por ter saído fantasiado de Vedete, em 2020 foi tema do desfile que deu o segundo lugar à escola Acadêmicos da Grande Rio. Joãozinho da Gomeia, um dos mais importantes líderes do Candomblé brasileiro, foi homenageado no enredo “Tata Londirá: o canto do caboclo no quilombo de Caxias”.
Não faltaram referências aos orixás durante o desfile. O primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira cruzou a avenida com fantasias que remetiam a Exu e Pomba Gira. Maquiagem, figurino e carros alegóricos colocaram rituais dos terreiros como elementos essenciais e centrais da formação do povo brasileiro.
Giram presidentes, penitentes, yabás/ Curva se a rainha/ E os ogans batuqueiros pedem paz/ Salve o candomblé, eparrei Oyá
Em um movimento declarado de retorno e valorização da comunidade onde nasceu, a Grande Rio percorreu a avenida liderada por Fabrício Machado, o mestre Fafá. Cria de Caxias, ele teve o reforço do intérprete Evandro Malandro e da primeira porta-bandeira Taciana Couto, que também são da comunidade.
Elza Deusa Soares
Levada à avenida como uma deusa com origem no povo, Elza Soares foi homenageada pelo enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel, que ficou com o terceiro lugar. O desfile foi marcado por elementos que celebraram o empoderamento feminino e o sincretismo religioso.
Por meio da história da cantora, a escola cantou a vida de mulheres trabalhadoras. Um dos carros alegóricos listava os obstáculos que fizeram parte da vida da artista, comuns a muitas mulheres, entre eles a misoginia, o machismo e o racismo. A tolerância e a diversidade foram celebradas na letra do samba e em um carro alegórico, que trazia a frase “Exu te ama”.
Laroyê e Mojubá, liberdade/ Abre os caminhos pra Elza passar/ Salve a mocidade/ Essa nega tem poder/ É luz que clareia/ É samba que corre na veia
Exu protege as ruas e o povo
A Beija-Flor fechou os desfiles da Sapucaí na madrugada de segunda-feira (24) com uma celebração às ruas. Da era do gelo à Sapucaí, a escola falou sobre a construção de caminhos, pontes e estradas como mecanismo de evolução da humanidade. Durante todo o desfile o recado da agremiação de Nilópolis foi claro: a rua pertence ao povo.
Exu, entidade que abre caminhos e permite a comunicação nas religiões de matriz africana abriu o desfile. A comissão de frente simulava uma briga de gangues em uma encruzilhada. Tranca Ruas, Pomba Gira, Malandro e outras manifestações da Umbanda foram vestidos com roupagem moderna e ares punks e distópicos.
No samba enredo, Exu apareceu como protetor do povo nas ruas:
Por mais que existam barreiras/ Eu vim pra vencer no teu ninho/ É bom lembrar, eu não estou sozinho/ Ê Laroyê Ina Mojubá
Adakê Exu ô, ô, ô/ Segura o povo que o povo é o dono da rua/ Ô corre gira que a rua é do Beija-Flor!
No fim do desfile, o povo tomou as ruas em uma ala com fantasias brancas e prateadas e empunhado cartazes. Alguns deles falavam de saudade, do amor pela escola e pelo Carnaval, em frases retiradas de sambas da Beija-Flor. Entre elas, a frase que representou o grito mais alto deste Carnaval na Sapucaí "Meu canto é resistência".
Política na avenida
O Carnaval do grupo especial na Sapucaí também trouxe críticas políticas, exaltação à diversidade e pedidos de respeito às minorias. As fake news de Jair Bolsonaro foram retratadas pela São Clemente. O humorista Marcelo Adnet, um dos compositores do enredo “O Conto do Vigário”, fechou a passagem da escola pela Sapucaí fantasiado como o presidente. Fazendo flexões e gestos de arma com as mãos, ele estava no alto de um carro alegórico adornado pelas mentiras propagadas pelo capitão reformado. A bateria entrou vestida de laranjal, em alusão às suspeitas do uso de laranjas no financiamento da campanha eleitoral de Bolsonaro.
Políticos ricos e poderosos sentados em vasos-sanitários e favelas vigiadas por helicopteros que pediam paz marcaram o desfile da União da Ilha. O enredo “Nas encruzilhadas da vida, entre becos, ruas e vielas, a sorte está lançada: Salve-se quem puder!” denunciava a violência e a desigualdade. A escola colocou um ônibus lotado sendo assaltado na avenida e iniciou a passagem pela Sapucaí lembrando a importância da educação.
A campeã de 2019, Mangueira, marcou a noite com diversas representações de Jesus Cristo e o enredo “A verdade vos fará livre”. Na comissão de frente, Cristo aparece vestido como um jovem de comunidade que é revistado por policiais. A rainha da bateria, representou Cristo como uma mulher negra.
No primeiro dia de desfiles, a Portela contou a história da chegada do povo Tupinambá ao Rio de Janeiro. Os indígenas acreditavam ter encontrado o paraíso na região. A escola levou esse Rio de Janeiro edílico para a avenida, mas não esqueceu do tom crítico ao lembrar o caos urbano da atualidade. O Rio ideal foi retratado pela Unidos da Tijuca, que falou sobre a história da arquitetura e do urbanismo com o enredo "Onde Nascem os Sonhos". Um dos carros alegóricos representava a cidade ideal, com saúde, segurança, educação e cultural.
Edição: Rodrigo Chagas