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Carnaval, censura e golpe: a democracia é uma fantasia?

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No último dia de carnaval, o presidente encaminhou um vídeo convocando um manifestação, pedindo o fechamento do Congresso Nacional - Leo Malafaia/AFP
O que está em jogo e sob ameaça é a garantia da ordem democrática

“Custei a compreender que a fantasia / É um troço que o cara tira no carnaval / E usa nos outros dias por toda a vida”

Aldir Blanc e João Bosco

A relação ente arte e política faz parte da história da humanidade. São incontáveis os exemplos de manifestação política por meio da música, do teatro, da literatura, do cinema, da poesia. Não significa que todos os artistas façam algum tipo de engajamento ou ativismo político, ou que a arte seja necessariamente transformadora. Ela pode servir também, e há experiências, como instrumento de dominação.

O carnaval não é uma festa de origem brasileira. Segundo os historiadores, ele existe desde a antiguidade e assume diversas facetas, variando no tempo e no lugar, associado a outros rituais, influenciado por diferentes movimentos, incluindo a religião. Mas, é certo que temos aqui no Brasil a mais famosa celebração do mundo, desde o surgimento do samba e das escolas durante o século XX. Expandida pelos diversos cantos do país, a festa assume as cores do lugar, como o frevo em Pernambuco e o axé na Bahia.

O desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro é o maior evento do calendário carnavalesco brasileiro. Transmitido com exclusividade pela maior emissora de TV do Brasil e visto ao vivo por milhares de pessoas, que se aglomeram em luxuosos camarotes, ou nas simples arquibancadas. As agremiações desenvolvem um enredo a partir da concepção de um carnavalesco, profissional com expertise na celebração, que interpreta um samba previamente escolhido e divulgado.

Em alguns anos, mais que outros, os enredos adquirem uma dramaturgia que se volta para os problemas sociais. Em regra, são temas que remetem ao passado histórico. Em 1988, a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), determinou como tema único para todas as escolas: o centenário da abolição da escravatura. Mas, não raramente, agremiações são ameaçadas de censura prévia, provocada sobretudo pelas Igrejas. O caso clássico foi sobre a escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, no ano de 1989, ao levar um Cristo mendigo para a avenida, em seu carro abre alas. Irreverente, o carnavalesco Joãozinho Trinta cobriu a alegoria e escreveu: “mesmo proibido, rogai por nós”.

Recentemente, escolas têm escolhido contar a história do tempo presente. Em 2018, a Paraíso do Tuiuti abordou as manifestações populares, que levaram ao golpe parlamentar que tirou a presidenta Dilma do poder, e a situação do país pouco mais de um ano depois. Apresentou o famoso pato da Fiesp, fantoches manipulados, carteiras de trabalho rasgadas, tudo entoado por um samba que expunha o formato da escravidão nos tempos atuais, um “cativeiro social”. E foi agraciada com o vice-campeonato, apesar de ser uma escola egressa do grupo de acesso e sem visibilidade até então. 

No carnaval de 2020 a crítica foi mais coletiva e mais severa. Escolas bateram fundo no uso indevido da religião. O Cristo que não foi permitido como mendigo à Beija-Flor em 1989, ganhou a feição de índio, de negro e de mulher, na interpretação da Mangueira. Como homem pobre e favelado, Jesus apanhou da polícia e foi ressignificado como alguém que hoje seria novamente crucificado. De outro lado, a figura do Presidente da República foi escancaradamente levada à Sapucaí vestido de palhaço, em teatralização ridicularizante, em carros com a figura de burros e decorados com laranjas, em alusão às candidaturas de fachada do PSL, partido que o elegeu.

O carnaval transmitido ao vivo e depois exposto na internet, nos jornais e revistas não deve ter sido fácil para Jair Bolsonaro. De tal modo que, no derradeiro dia da folia de Momo, ele resolveu vestir sua fantasia de amante da ditadura e atrair a atenção para uma festa diferente. Uma que está sendo planejada por seus apoiadores.

O presidente encaminhou um vídeo de convocação para manifestação no dia 15 de março próximo, pedindo o fechamento do Congresso Nacional, cometendo claro crime de responsabilidade, pela letra do art. 85, II, da Constituição Federal de 1988, que dispõe especificamente sobre atos do Presidente da República que atentem contra o livre exercício dos demais poderes.

Após a repercussão, Bolsonaro afirmou, pelas redes sociais, na manhã de hoje (26), que usa o WhatsApp “para fins pessoais” e afirmou haver ilações fora de contexto para “tumultuar a República”. Com a manifestação, assume o envio do vídeo, agindo como se o encaminhamento para um número menor de pessoas o isente do crime cometido.

A voz do Poder Judiciário veio do decano do STF, ministro Celso de Mello, dura e contundente, concluindo que o atual governante não está à altura do cargo que exerce.
Por outro lado, o inaceitável silêncio dos presidentes das duas Casas do Congresso Nacional causa estranheza, espanto e expectativa. Para além de ser o poder afetado pela ação de Bolsonaro, é à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal que cabe a análise de impedimento e o afastamento do Presidente da República, diante do cometimento de crime de responsabilidade.

Portanto, a responsabilidade de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre é muito maior que simplesmente responder ao ataque. Da palavra deles deve vir a afirmação da independência do Poder Legislativo e da supremacia da Constituição Federal. É preciso dar o devido enquadramento à vontade autoritária do governante, para que tenha noção de que não se trata mais apenas dos seus já costumeiros discursos reacionários, violadores de direitos, mas de um ato gravíssimo de significação política extrema.

É preciso uma exibição de autoridade institucional. Ou ficará consignado que o que temos, na verdade, é apenas uma democracia carnavalesca, uma fantasia, que pode ser despida e jogada às cinzas antes mesmo da quarta-feira.

Sem máscaras, o que está em jogo e sob ameaça é a garantia da ordem democrática.

Edição: Rodrigo Chagas