Devemos gritar pelo fim da família, daquela família excludente, racista e moralista
Por Eder Monica Fernandes*
No dia 16 de outubro de 2019 aconteceu o debate "Família, Religião e Política", no Seminário "Democracia em Colapso?", promovido pelo Sesc São Paulo e pela editora Boitempo. Mesmo o seminário tendo acontecido há alguns meses, nesses últimos dias circularam pequenos trechos do vídeo do debate descontextualizando, principalmente, a fala da educadora popular Amanda Palha no momento em que ela defendeu a "destruição da família".
Ao mesmo tempo, acompanho alguns setores da esquerda defendendo uma aproximação estratégica com setores religiosos e conservadores, ao preço do silêncio em relação aos temas de gênero e sexualidade, por serem tidos como moralmente polêmicos e por se desviarem da “causa primeira da esquerda”, a discussão sobre classes.
Não creio que devemos caminhar no sentido de entender que as questões de gênero e sexualidade são secundárias para o pensamento de esquerda, ou por serem lidas como causas liberais, ou por defenderem a tese de que, uma vez resolvidas as questões de classe, essas outras questões também encontrariam sua solução.
Também não creio que devemos abandoná-las por serem usadas como "cortina de fumaça" para acobertar outras mudanças políticas ou desviar o foco em relação a outros problemas gravosos, já que provocam grande embate moral e debates extremamente apaixonados.
Devemos ir além, com um olhar um pouco mais realista, pois todas as pautas que envolvem desigualdades são importantes e necessárias, desde que sejam baseadas na busca por emancipação e igualdade. Efetivamente, os embates trazidos pelos movimentos LGBTQI+ e feministas são provocativos por lidarem com questões do cotidiano e da vida comum das pessoas, suas crenças e suas formas de sustentarem sua própria identidade no mundo.
A grande questão é que essa pauta, além de provocativa, toca em pontos centrais do núcleo fundante da hegemonia liberal. Se não fosse assim, porque em momentos de grandes embates políticos a família, o gênero e a sexualidade são colocados como pontos de disputa? Que implicações possuem esses temas para a política da sociedade como um todo? Há como pensar uma política emancipatória sem debater essas questões?
Grande parte de nossa sociedade está engajada na defesa dos valores tradicionais cristãos que sustentam a família e as relações afetivas. Muitas vezes elas se valem de pânicos morais para sustentar suas posições, alertando a todos sobre os perigos destruidores de posicionamentos críticos sobre esses assuntos.
Realmente, as pautas dos movimentos LGBTQI+, quando críticas à estrutura liberal tradicional e às suas alianças com o conservadorismo cristão, atacam profundamente o padrão da família e das relações afetivas tradicionais. Mas, em tempos de profundas polarizações políticas, como a que estamos vivendo, esses temas ganham extremo destaque e são entendidos como os responsáveis pelas nossas profundas dissidências políticas e pela falta de oportunidades de diálogos e consensos.
Só que esse pensamento de que as pautas LGBTQI+ obscurecem as temáticas radicais da esquerda precisa ser melhor analisado, pois não é correto. Quando criticamos a família tradicional e quando pensamos em novos arranjos de parentesco e afetividades, estamos pensando em mudanças radicais na sociedade, em alterações que dizem respeito a um dos núcleos essenciais do poder dominante: o domínio privado.
O alarme do poder hegemônico sempre soa quando tentamos tocar nessa estrutura. Além disso, trabalhar criticamente a noção de identidade e sujeito de direitos é tentar compreender as insuficiências e desigualdades produzidas pelo sistema e caminhar na direção de uma sociedade menos desigual também nos tratos mais pessoais e cotidianos.
Portanto, quando a pauta é realmente radical, quando é crítica à hegemonia liberal e às insuficiências do capitalismo, ela é aliada às lutas comuns da esquerda, pois não se resume apenas ao campo cultural, nem simplesmente se confunde com a política identitária multiculturalista formulada durante a renovação do liberalismo nos idos de 1960.
Entretanto, para que esses dois últimos problemas não ocorram, é necessário que os próprios movimentos LGBTQI+ resgatem o sentido radical de suas pautas, para além da ênfase nas questões que são facilmente absorvidas e engendradas pelo sistema liberal.
Se observarmos as grandes pautas levadas por representantes dos movimentos LGBTQI+ ao Supremo Tribunal Federal, verificaremos que, por mais bem-intencionados que esses representantes possam ser, essas pautas acabaram facilmente absorvidas pelo discurso liberal e pela ordem capitalista.
Em nome de uma suposta negociação de prioridades, em que primeiro buscaríamos a igualdade formal liberal para, em um outro momento, discutir a própria estrutura do sistema, acabamos perdendo em potência e em propostas alternativas à ordem posta. Ao mesmo tempo em que fomos confundidos como reformistas liberais pela esquerda, fomos acusados como os grandes demônios da moralidade pela direita.
Vejo que o destino dos movimentos LGBTQI+ indicam dois grandes caminhos, tal qual o que vem ocorrendo hoje com a esquerda em geral. Diante da forte ofensiva conservadora e de direita, estamos diante do impasse de ou radicalizar ainda mais, resgatando o sentido histórico da caminhada da esquerda, ou produzir elos e possibilidades de diálogos, através de negociações que nos trazem o risco de ceder demasiadamente e perder o sentido da radicalidade que nos caracteriza.
Por isso, creio ser hora de nós, pertencentes aos movimentos LGBTQI+, pensarmos qual caminho queremos seguir. Já experimentamos o caminho da negociação e da mistura das nossas pautas e acabamos absorvidos pela hegemonia liberal. Creio que um bom recomeço é voltarmos ao centro daquilo que nos distingue. Negar nossas pautas é negar nossa identidade.
As relações de parentesco, os modos como se estrutura a ordem reprodutiva e o gênero e as formas como o sistema controla e produz os sentidos possíveis para nossas subjetividades são questões que efetivamente precisam ser trabalhadas.
Precisamos investir ainda mais em debates avançados sobre gênero e sexualidade, raça, maternidade, identidades e culturas divergentes e outras questões que entraram na pauta da sociedade e não serão mais esquecidas. Todavia, não devemos perder o foco da radicalidade.
Por isso, devemos nos juntar a Amanda Palha e gritar pelo fim da família, daquela família excludente, racista e moralista; também gritar com aquelas que defendem o fim das estruturas patriarcais que perpetuam as desigualdades de gênero; com aquelas que bradam pelo fim do padrão heterossexual masculino que sustenta a homotransfobia; e com todos os que lutam pelo fim do racismo, contra esse projeto genocida que assola a população negra. Tudo o que perpetua a desigualdade deve ser destruído!
*Eder Monica Fernandes, Professor de Direito da Universidade Federal Fluminense, Integrante do GT Gênero e Sexualidade (IPDMS)
Edição: Leandro Melito