Há alguns dias começamos a receber as notícias de que uma nova epidemia viral está se alastrando pelo mundo. Trata-se de um agente infeccioso da família do coronavírus, que ataca o sistema respiratório e pode causar desde sintomas de resfriados até síndrome respiratória aguda grave.
O surto, que começou na cidade de Wuhan, na China, ainda tem causa desconhecida, ainda que uma das hipóteses seja a de que o vírus tenha sido transmitido de animais para seres humanos em um mercado de frutos do mar. O que se sabe, porém, é que independentemente da causa, as epidemias do mundo globalizado envolvem, além das questões próprias da Saúde Pública e da Medicina, questões da Política e das Relações Internacionais.
Traçar prognósticos diante de um cenário incerto é um tanto arriscado. Porém, há alguns faróis para onde podemos olhar e que podem nos fornecer elementos para avaliar a situação. Um desses faróis é a Organização Mundial da Saúde (OMS), organismo internacional cujo objetivo é assegurar a cobertura universal de saúde e lidar com grandes emergências.
No dia 22 de janeiro de 2020, o Comitê de Emergência da OMS se reuniu para debater se a epidemia de coronavirus se trata de uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) ou não. Conforme definição do Regulamento Sanitário Internacional, uma ESPII é um evento extraordinário e que constitui um grande risco de saúde pública para outros Estados devido à propagação entre países e que, portanto, exige uma resposta coordenada da comunidade internacional. Ou seja, não basta que a doença chegue a outros países, mas também deve oferecer ameaças à saúde pública.
De acordo com o informe da OMS, apesar das divergências iniciais entre os membros do Comitê de Emergência, o consenso final é de que a atual epidemia não se trata de uma emergência internacional. Ainda assim, concordou-se com a urgência da situação e se colocou a necessidade de um novo exame do Comitê nos próximos dez dias. Além disso, o comitê emitiu uma série de recomendações ao Estado chinês.
Entre as recomendações, está a tomada de medidas racionais no sistema público de saúde para contenção e mitigação do surto, além de busca ativa por casos da doença – principalmente durante as celebrações do Ano Novo Chinês – e monitoramento de aeroportos e portos internacionais nas províncias afetadas, para que haja, ao mesmo tempo, uma rápida detecção de infectados e um impacto mínimo ao tráfego internacional.
Ressalta-se que, a depender da avaliação do cenário, as recomendações da OMS podem mudar a qualquer momento, mas em relação à avaliação atual, três pontos merecem destaque: mobilidade, racionalidade e acionamento do sistema público de saúde.
Mobilidade
No que concerne à mobilidade, note-se que em momento algum a OMS recomendou a restrição ao trânsito humano. Como apontou a especialista em Saúde Global Deisy Ventura, da Faculdade de Saúde Pública da USP, durante a crise do Ebola (a quinta Emergência Internacional desde a criação da categoria), mais de 40 Estados ignoraram a recomendação da OMS de não restringir a circulação de pessoas e muitos deles sequer responderam à Organização quando questionados.
Medidas de isolamento das áreas afetadas prejudicam o fluxo de profissionais de saúde, de materiais médicos e de assistência humanitária, além de que, a interrupção de contatos comerciais afeta o abastecimento de bens e serviços e aumenta a possibilidade de uma grande onda de pânico coletivo. Ou seja: melhor monitorar as entradas do que fechá-las.
Histeria
O pânico coletivo nos leva ao segundo ponto que merece destaque. Tão ineficiente quanto a restrição do fluxo de pessoas para combate às epidemias é a histeria massiva que se cria e que, muitas vezes, é alimentada pela grande mídia. Nesse sentido, a recomendação da OMS é clara: adoção de medidas racionais no sistema de saúde público, o que envolve dar a dimensão e o cuidado adequados à urgência da situação.
Além de contraproducente, inflar o pânico coletivo abre margem a ações totalitárias, criação de estados de exceção e violações de direitos humanos. A epidemia de ebola foi considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma ameaça à paz e à segurança internacionais, instaurando-se um trato securitário a uma questão de saúde pública, sem levar em conta determinantes sociais e econômicos do local onde se iniciou a epidemia e para onde ela se alastrou.
Sistema público de saúde
Por fim, destaco o terceiro ponto importante das recomendações da OMS para o caso do coronavirus: para que as medidas racionais sobre as quais comentei acima sejam tomadas pelo sistema público de saúde, é obviamente necessário que existam sistemas públicos de saúde nos países.
Não é de hoje que a OMS aponta que a universalização do acesso à saúde é um imperativo de sobrevivência na dinâmica do mundo globalizado. Em 2019, a Organização definiu que uma de suas metas é o fortalecimento dos sistemas nacionais, para que tenham capacidade de detectar e responder a surtos e epidemias.
No dia 25 de janeiro de 2020, os pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) afirmaram que é muito provável que o vírus chegue ao Brasil mas que não há motivo para pânico. Acrescento que um dos motivos de o país sinalizar sua capacidade de enfrentar a epidemia é a existência do Sistema Único de Saúde (SUS).
Atualmente, o SUS ainda detém uma estrutura relativamente boa para lidar com epidemias, apesar do desmonte que vem se dando a olhos vistos como fruto de políticas neoliberais de sucateamento e privatização. Portanto, é essencial que o nosso sistema de saúde continue vivo, para que tenhamos a capacidade de lidar com as doenças de forma organizada e racional. Caso contrário, além de padecermos de neoliberalismo, padeceremos da próxima epidemia global.
Natália Araújo é militante do Levante Popular da Juventude e possui bacharelado e mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP).
Edição: Leandro Melito