Há 20 anos, a Iyalorixá Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum, faleceu em decorrência de um ataque motivado por intolerância religiosa. O atentado teve como alvo o terreiro de Candomblé, Ilê Axé Abassá de Ogum, localizado nas imediações da Lagoa do Abaeté, bairro de Itapuã em Salvador (BA).
O templo foi invadido e depredado por fundamentalistas da Igreja Universal do Reino de Deus, que agrediram o marido de Mãe Gilda violentamente. Dois meses depois, um jornal da mesma igreja publicou uma foto da Ialorixá, com uma tarja no rosto e a manchete: "Macumbeiros charlatões lesam a vida e o bolso de clientes". Ao ver a publicação, a idosa de 65 anos teve um ataque cardíaco fulminante e faleceu no dia 21 de janeiro.
Em homenagem à Iyalorixá, a data foi instituída como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, em 2007, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mais de uma década depois do gesto, os ataques que atingiram Mãe Gilda ainda fazem parte da realidade dos praticantes das religiões de matriz africana.
Só no primeiro semestre de 2019, houve um aumento de 56% no número de denúncias de intolerância religiosa em comparação ao mesmo período do ano anterior. A maior parte dos relatos foi feita por praticantes de crenças como a Umbanda e o Candomblé.
Os casos são registrados via Disque 100, número de telefone do governo criado em 2011, que funciona 24 horas por dia para receber denúncias de violações de direitos humanos. Entre 2015 e o primeiro semestre de 2019, foram 2.722 casos de intolerância religiosa – uma média de 50 por mês.
Os números podem ser ainda mais expressivos, já que em muitos casos as vítimas não realizam a denúncia, por medo de que a violência se repita ou de que o Estado não preste o apoio necessário. A professora de geografia, Jamila Prata, de 31 anos, sofreu um ataque verbal quando passava por uma igreja evangélica em uma rua na Vila Sônia, na capital paulista, quando ia a padaria. Candomblecista, ela havia acabado de passar pelo processo de iniciação da religião, que se caracteriza pelo resguardo, roupas brancas e pano branco cobrindo a cabeça.
“Eu comprei pão e, na volta, quando eu ia me aproximando ainda na outra calçada, eu vi que tinha mais gente na porta da Igreja e vi que eles falavam todos juntos frases como: 'Senhor, protegei-nos do demônio'. Eles estavam se voltando para mim e algumas pessoas no meio gritavam: 'Queima ela, queima ela, Senhor", relata Jamila.
O caso aconteceu em 2017, mas a marca da agressão ainda está presente na memória da professora, que não conseguiu prestar queixa.
“Machucou bastante, doeu, porque estava em um momento muito bonito, de muita paz e plenitude e foi uma violência. Eu me senti muito impotente. Eu pensei em fazer queixa, mas eu não tinha provas, nem ninguém na rua. E eu também não queria, naquele momento, entrar em uma delegacia. Lembrar ainda me traz tristeza”, conta.
Com o intuito de apurar os casos e dar assistência psicológica e jurídica às casas e praticantes das religiões de matriz africana, nasceu, no ano passado, o Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões de Matriz Africana (Idafro).
Entre advogados, contabilistas, sociólogos (as), sacerdotes e sacerdotisas, a organização reúne militantes que já estavam articulados em um coletivo da sociedade civil em ações contra a intolerância religiosa.
A Iyalorixá Luciana de Oya, líder religiosa do Ilê Oba Axé Obodó, localizado no Jardim Mata Virgem, em São Paulo (SP), é uma das integrantes do grupo e fala sobre o apoio prestado pela organização, inclusive em casos de abordagem policial.
"A gente ouve dizer que a polícia chegou, que a polícia entrou no terreiro. Então, essas pessoas são orientadas a partir de atividades do Idafro. Como ela se comporta diante de uma intervenção policial? A polícia pode ou não pode entrar? Entre outros detalhes”, afirma.
Luciana lembra que a Constituição garante os direitos de todas as religiões e, para combater a intolerância religiosa, a comunidade precisa ter conhecimento sobre a legislação.
“Tem essa demanda de como eu faço para me defender, porque a intolerância religiosa ela exige que o tempo todo a gente tenha instrumentos para poder se defender. Tem uma legislação que normatiza isso e as casas, na maioria das vezes, não sabem. É essa uma das formas que nos encontramos para amenizar a intolerância religiosa, porque o outro precisa saber se ele tem direito às religiões de matriz africana também tem direito”, aponta.
Avanços
Apesar do aumento no número de casos no ano passado, a Iyalorixá acredita que o período representou conquistas, não só pela criação da organização, mas também pelo marco histórico da representação dos povos de terreiro no Supremo Tribunal Federal (STF), que, com unanimidade dos votos, garantiu a liberdade de crença e do abate de animais pela religião.
"Neste momento em que você está com o poder da igreja, que você tem um presidente que tem as declarações intolerantes, ganhar essa ação por unanimidade é olhar e dizer que esta instituição está olhando para o direito, não para a religião, porque nós estávamos falando do direito constitucional ao abate”, indica.
Além do avanço na garantia de direitos, ela ressalta que houve uma reação direta na valorização da população de matriz africana. “Isso reverberou no Brasil e foi extremamente importante, inclusive do ponto de vista da autoestima. Há séculos nós somos massacrados, hostilizados. Isso resgatou a autoestima de todo um povo, que a única coisa que quer é ter o direito de cultuar a sua crença, o seu orixá”.
Governo federal
De acordo com a revista Veja, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, atuam juntos para incluir uma disciplina sobre tolerância religiosa na grade curricular das escolas. Damares confirmou a informação em uma publicação no Instagram, mas não deu mais destalhes sobre o tema.
Entretanto, para a Iyalorixá Luciana de Oya, o governo federal deveria se concentrar na aplicação das leis que já que existem. “A gente não precisa inventar o novo. Nós temos uma Lei que é a 10.639, que tem 14 ou 15 anos e que não foi efetivada nas escolas. São poucas as escolas que se utilizaram daquela lei, por conta da intolerância religiosa”, indica.
A afirmação da líder religiosa vem da sua experiência como gestora do Polo Cultural Lar Maria Sininha, onde atua com educação e direitos da criança e adolescente. "Tem um dado de que as escolas, no seu corpo diretivo, estão tomadas por pessoas evangélicas. Por exemplo, eu tenho um sobrinho que a mãe vem se queixar, porque na creche, antes de comer, ele tinha que ler a Bíblia e a mãe é de religião de matriz africana", conta.
Luciana relata ainda casos de estudantes que sofrem perseguição religiosa por parte da escola e ressalta a importância de um trabalho mais efetivo e estrutural de combate ao problema.
“Uma coisa que é diário, ficar atento. Eu não consigo entender como a ministra pensa em regulamentar isso se não tiver um trabalho anterior. Como a gente vai discutir isso na diretoria de ensino? Como a gente vai discutir isso no ministério? Porque já existe uma lei que não está efetivada”, denuncia.
Edição: Vivian Fernandes e Nara Lacerda