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Dois Papas: quando a arte não imita a vida

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Joseph Ratzinger, enfatizado sobremaneira pelos diálogos criados, parece muito distante da figura que ele demonstra ser na vida real
Joseph Ratzinger, enfatizado sobremaneira pelos diálogos criados, parece muito distante da figura que ele demonstra ser na vida real - Foto: Divulgação / Netflix
Meirelles fez um trabalho de catequese. A remição, afinal, foi para o Vaticano.

Eu estudei dança do ventre durante alguns anos. Vários anos. Até que a Rede Globo de Televisão lançou a novela O Clone em 2001/2002. A versão passada sobre a dança e a busca desenfreada de mulheres sedentas do aprendizado de performances “para seduzir” me pareceram insuportáveis.

A academia de dança não mais servia para a prática de uma cultura milenar, mas para ajudar candidatas a Jade – nome da protagonista da trama – em tempo recorde, a fazer trejeitos sensuais para apresentações a seus parceiros, familiares, amigos, em aniversários, festas e afins, com roupas de “odalisca”. Tudo de acordo com o script.

A lembrança me vem agora por recordar um diálogo público, entre o então embaixador do Marrocos no Brasil, e a autora do folhetim Glória Perez. O diplomata acusou a Rede Globo de Televisão de vender um país que não era o dele, misturando cidades, práticas e tempos históricos, confundindo ao invés de informar.

De fato, a novela promovia fusões culturais, mesclando o Marrocos contemporâneo com aquele pré-islâmico, onde se vendia mulheres como escravas, em que um homem podia possuir várias esposas. A dança, no drama televisivo, aparecia como elemento de erotização, os trajes correspondiam ao que se usa no Egito, um deslocamento espacial que somente acentuava a desinformação.

Ouvidas em entrevistas, mulheres marroquinas que viviam no Brasil diziam não se reconhecer em nada nos perfis das personagens femininas representadas. Ficou evidente que a televisão investiu no exótico fácil, misturou diversos estereótipos e incorreu em vários equívocos.
O embaixador argumentou sobre as dificuldades que essa narrativa trazia para a imagem de seu país. Glória Perez respondeu que novela é uma obra de ficção, ao que ele retrucou que ela deveria, então, criar um país fictício, não apresentar o dele de forma deturpada.

Eu amava a dança, mas não o que foi feito dela durante e após a novela. Isso eu detestava. No dia em que me convidaram pra dançar em uma despedida de solteiro, compreendi o tamanho do equívoco produzido no imaginário coletivo. Foi quando decidi parar de dançar.
Por que falar disso agora mais de 15 anos depois?

Porque desde então sou preocupada com as narrativas fictícias de temas reais enquanto eles acontecem. E nunca havia me impressionado tanto com o impacto de um filme como no caso de Dois Papas, do Fernando Meirelles, que passou rapidinho pelo cinema e foi pra Netflix. E concorre ao Oscar de roteiro adaptado.

Estão quase todas e todos, as minhas amigas e amigos, encantados, não pelas personagens, mas pelos homens da vida real. O filme tem uma fotografia estupenda, a atuação do Anthony Hopkins e do Jonathas Pryce é maravilhosa, como sempre. São monstros da interpretação esses dois. Não estão ambos indicados ao Oscar senão por absoluto merecimento. Na estética também não se esperaria diferente de um filme do Meirelles, exceto uma qualidade superior. Ele é um grande cineasta.

O problema, a meu ver, é justamente o roteiro e a adaptação dos fatos para o cinema. Se é culturalmente perigoso criar uma versão fictícia de uma história real, mais perigoso ainda se a história é de tempos atuais, está ocorrendo enquanto é narrada, e se a obra cria respostas simples para grandes e complexos problemas ou eventos, que são contraditórios e cheios de arestas.

No filme há um retrato super humanizado e afetuoso da relação entre os dois Papas. Mostra um Joseph Ratzinger quase ingênuo, inclusive acerca do “nobre motivo” de sua renúncia, que teria ocorrido pelo reconhecimento de que a Igreja precisaria de alguém mais progressista que ele mesmo. Ou seja, precisaria de Francisco.

Coube a Bento XVI, segundo o filme, o convencimento de Jorge Bergoglio a aceitar o cargo. Ratzinger criou Bergoglio, ou melhor, Bento criou Francisco. Isso após a revelação pela chama de uma vela, que desceu ao invés de subir, mostrando o significado maior de que ele estava sendo rejeitado por Deus. Parece crível?

A parte da vela e da rejeição divina pode ser, quem sabe… fé é fé, não é possível discutir. Mas todo o resto soa bastante inverossímil.
Fora o fato pragmático de que não há qualquer registro de que os dois homens tenham se encontrado antes de Bergoglio se tornar o Papa Francisco, exceto no conclave que elegeu Bento XVI em 2005, e a pouca ênfase no enorme escândalo que se abatia sobre o Vaticano naquele momento em 2012, o fato é que o retrato que é feito de Joseph Ratzinger, enfatizado sobremaneira pelos diálogos criados, parece muito distante da figura que ele demonstra ser na vida real, e da prática dele que se tem conhecimento formal.

Ratzinger sempre foi um religioso extremamente influente, inteligente, estudioso, perspicaz, político e conservador. Profundamente conservador.Pertenceu à juventude nazista e ficou inclusive alguns meses preso pelos aliados norte americanos após a Guerra. Existe um número muito grande de denúncias e acusações contra ele, que variam de homicídio a corrupção. Mas, não se sabe da existência de provas dessas acusações. Portanto, as menções a isso ficam por aqui.

O que não é refutável é que Ratzinger foi, como autoridade, ainda no papado de João Paulo II, um perseguidor de religiosos das teologias da libertação nos anos de 1984 a 1986, e atuou nos processos de condenação e expulsão de vários religiosos do mundo inteiro. Ele redigiu diversos documentos oficiais sobre isso. Também é dele, em conjunto com o então Papa, o Evangelium Vitae, em 1995, e o Splendor Veritas. Os dois textos considerados pelos estudiosos do Vaticano como a direção da visão reacionária da Igreja sobre as questões políticas e sociais da atualidade.

Do mesmo modo, é inexorável compreender que a renúncia de Bento XVI serviu para abafar a crise que expôs figuras importantes de dentro do Vaticano, sem que os e-mails mencionados pela imprensa, trocados entre ele e o assessor que fora preso, viessem à tona. A divulgação de documentos secretos e a luta interna dentro da Cúria nunca foram totalmente aclaradas, mas é importante lembrar que as investigações não eram sobre questões religiosas nem teológicas, mas sobre as contas da Santa Sé, desvios e corrupção. Que papel ele teria nisso? Talvez não saibamos senão em tempos futuros distantes.

O teólogo norte americano Matthew Fox, ex-padre católico, expulso da Ordem Dominicana à qual pertenceu por 34 anos, é autor de vários livros, entre eles A guerra do Papa: Por que a cruzada secreta de Ratzinger ameaçou a Igreja e como ela pode ser salva. Na obra ele cita 104 teólogos expulsos por Ratzinger ainda durante o papado de João Paulo II, e várias ações conduzidas por ele, com vistas a anular as decisões do Concílio Vaticano II, chamado por João XXIII. Foi essa assembleia que deu origem ao movimento da Teologia da Libertação e à opção preferencial pelos pobres, que, por sua vez, foi o mote para a criação das comunidades eclesiais de base, fomentando um novo jeito de pensar e fazer a Igreja.

Com dados, nomes, locais, Fox afirma no livro coisas como “Bento trouxe de volta a Inquisição”. E mostra um homem completamente antagônico àquele apresentado no filme Dois Papas. Em seu livro denominado A Eleição do Papa Francisco: Um relato íntimo do conclave que mudou a história, o jornalista irlandês Gerard O'Connell, que cobre o Vaticano há 20 anos, narra que o candidato preferido de Ratzinger para sucedê-lo era o arcebispo de Milão, Angelo Scola, aliás, citado pela imprensa de todo o mundo como favorito.

O livro conta, ainda, supostas reuniões que teriam conduzido à eleição de um religioso que não era sequer mencionado antes do conclave, e garante o autor que não houve qualquer campanha a favor de Bergoglio. Seu nome como candidato teria surgido lentamente, e apenas nos dias que antecederam a votação na Capela Sistina.

Com as informações que se tem, a probabilidade de que Bento XVI tenha dado aval e buscado convencer Jorge Bergoglio a ser Papa em seu lugar é uma possibilidade não apenas remota, mas bastante improvável. Contudo, mesmo de argumento duvidoso, o filme Dois Papas é altamente recomendável como obra de arte.

Como roteiro, se Fernando Meirelles fosse católico praticante, não teria feito um trabalho melhor. Manteve o encanto natural de Francisco e redimiu, com os elementos da fé - arrependimento, abnegação e perdão -, o insociável, impopular e anacrônico Raztinger, gestando uma empatia com o público, a partir de uma imagem que muito provavelmente não corresponde à sua personalidade, com direito a dançar tango com o colega e ver futebol, nada mais singelo e popular.

Meirelles fez um trabalho de catequese. A remição, afinal, foi para o Vaticano. Se receber um Oscar sua versão, ou melhor, seu “roteiro adaptado” ganhará feição de realidade. O que dizer? Amém?

Edição: Leandro Melito