Coluna

O Povo, Inimigo n.º1

Imagem de perfil do Colunistaesd
Moradores de Paraisópolis protestaram na última quarta-feira (4) contra ação da PM que levou à morte nove jovens
Moradores de Paraisópolis protestaram na última quarta-feira (4) contra ação da PM que levou à morte nove jovens - Elineudo Meira
Brasil vive polarização entre os que atiram e os que são alvos

Paraisópolis é a mais recente de um ano marcado por tragédias.Todas elas - Brumadinho, Ninho do Urubu, Suzano? - marcadas pela omissão ou, neste caso, por decisão do Estado. Este é um dos pontos que discutimos nesta semana. Vamos lá.

1. Paraisópolis, Brasil. O Brasil vive uma grave polarização. Entre os que atiram e os que são alvos. Ou melhor, entre os que atiram com autorização do Estado, policiais ou não, e suas vítimas. A morte de nove jovens após a ação da polícia paulista num baile funk em Paraisópolis choca pelo número de vítimas, mas não pela ação. Ao contrário, revela alguns procedimentos padrão da PM. Primeiro, a repressão aos bailes funk nas periferias, a Operação Pancadão, que já realizou mais de 7.500 ações do tipo neste ano, com 1.275 pessoas presas, mas um número de desconhecido de mortos e feridos, já que o uso de balas de borracha e gás lacrimogêneo são recorrentes. Há um ano, outros três jovens morreram pisoteados no tumulto da dispersão de um baile em Guarulhos. Há um mês, uma jovem de 16 anos perdeu o olho esquerdo após ser atingida por disparo de bala de borracha durante a dispersão de um baile em Guaianazes. Segundo, a tradicional justificativa de perseguição a criminosos que não se sustentou nem 24 horas. As testemunhas comprovam que não houve perseguição, que a ação foi deliberada, há suspeitas de que as vítimas não foram pisoteadas, o atendimento médico foi propositalmente impedido e toda a operação foi resultado de um mês em que policiais militares fizeram ameaças diárias aos moradores por conta da morte de um sargento. Não à toa, o MP decidiu investigar o caso como homicídios

Era de se esperar no mínimo empatia ou solidariedade dos gestores. Porém, João Dória não titubeou em defender a ação policial e mesmo em silenciar a própria ouvidoria (pressionado pela repercussão negativa, deu uma leve recuada no discurso). Não é exatamente surpreendente já que os governadores dos dois estados mais populosos do país usam o discurso da repressão policial sem limites tanto para surfar na onda conservadora quanto mirando no posicionamento eleitoral de 2022. Neste aspecto reproduzem o discurso e prática dos atuais ocupantes do Planalto, vida a proposta original do "projeto anti crime" de Sérgio Moro. A versão aprovada nesta semana no Congresso deixou de fora o excludente de ilicitude, a prisão pós-condenação em segunda Instância e o plea bargain – confissões em troca de penas mais branda. Mas inclui a figura do juiz de garantias, com um juiz responsável pela parte inicial do processo e outro para proferir a sentença, uma provocação ao próprio Moro.

2. Como nos tempos do Delfim. Quando a fase é ruim, qualquer 0,6% de crescimento do PIB no trimestre vira uma vitória - mesmo na imprensa que chamava os 2,7% de Dilma de “pibinho”. O fato de ter superado em 0,2% a previsão do mercado ganha ares de Copa do Mundo. O setor que mais cresceu no terceiro trimestre de 2019 foi o de agropecuária, com avanço de 1,3% em relação ao segundo trimestre. Já o setor industrial parece sair da sua catatonia e esboçou uma reação de 0,8% no período. Os números, porém, não convenceram o jornal britânico Financial Times, espécie de porta-voz do mercado internacional, que desconfiou do método e dos resultados das exportações para o cálculo do PIB, afirmando que os analistas internacionais não confiam nas estatísticas brasileiras, sutilmente insinuando que são manipuladas para parecerem mais favoráveis. O IBGE já admitiu a possibilidade de rever os cálculos depois da reportagem. O economista Guilherme Mello da Unicamp, porém, alerta “esse crescimento tem uma qualidade bastante frágil, baseado em um nível muito baixo e concentrado em alguns setores menos intensivos em tecnologia, que geram empregos de pior qualidade. É um crescimento lento em um cenário de depressão, o que para o trabalhador, particularmente, não é uma boa notícia”. Em especial quando a política do governo é justamente retirar direitos, acreditando que eles impeçam o crescimento. A última vítima é a política de cotas para pessoas com deficiência que será praticamente extinta por um projeto de lei.

O que tem crescido muito mais rápido e mais alto que o PIB é o preço da carne. A mudança de preço diária levou os açougues de volta aos tempos da remarcação do governo Sarney, enquanto a previsão é de que o preço continuará subindo até o próximo ano. A carne não foi o único produto que ficou mais caro: a inflação de novembro subiu 0,56%, acumulando alta de 3,64% no ano. E pode piorar, porque o preço da gasolina também deve entrar nesta conta - e por tabela influenciar outras despesas. Provocado pela Associação Brasileira das Importadoras de Combustíveis, o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) quer saber porque a Petrobras não está reajustando os preços de acordo com a variação do dólar, o que significaria, pelo menos 6% de reajuste para acompanhar os preços internacionais.

3. Quem eu quero não me quer. A relação tóxica entre Trump e Bolsonaro teve mais um episódio nesta semana quando os EUA decidiram sobretaxar o aço e o alumínio brasileiro, como represália para uma suposta desvalorização artificial do Real para tornar os produtos brasileiros mais competitivos no exterior. Na Época, Hussein Kalout analisa que o Itamaraty não entende que os “três coices cavalares” que o Brasil recebeu de Trump - retrocesso na promessa de apoio ao ingresso do Brasil na OCDE, a manutenção do fechamento do mercado americano para a exportação de carne in natura brasileira e agora a sobretaxa - não significam apenas que a relação não é recíproca, mas que, para Trump, as relações com o Brasil são meramente táticas para extrair concessões econômicas e comerciais; atacar governos locais e antagônicos aos EUA, leia-se Venezuela, e conter o poderio da China. Em especial, às vésperas da eleição americana, Trump não sacrificará nenhum voto pelas declarações de amor e continências de Bolsonaro. A BBC lembra sete situações em que a submissão de Bolsonaro por Trump não foi correspondida.

4. Dislike. Com o peso que a disseminação de fake news teve na eleição presidencial - quase 1500 ações chegaram aos tribunais eleitorais, a maioria contra a campanha de Bolsonaro - era esperado que a CPI das Fake News seria a pedra no sapato do governo no Congresso neste período. O que não se imaginava é que os protagonistas seriam os ex-aliados da família Bolsonaro. Depois de Alexandre Frota, foi a vez de outra dissidente, Joice Hasselmann (PSL-SP), depor na Comissão. Segundo a Deputada, 1,87 milhão de robôs são usados para inflar o número de seguidores da família Bolsonaro. Mas, mais importante, Joice explicou o funcionamento do chamado “gabinete do ódio”, responsável por manter as milícias virtuais funcionando desde o Palácio do Planalto. Pelos cálculos da ex-líder do governo, a equipe recebe cerca de R$ 491 mil de recursos públicos para produzir notícias falsas e memes com o objetivo de atacar ex-aliados e desafetos. 

Já o indiscutível mentor intelectual desta estratégia, o vereador Carlos Bolsonaro, adotou uma postura de reclusão. Fora das redes sociais, licenciado da Câmara, nem telefonema anda atendendo. Além da proximidade do seu depoimento na CPI, Carlos continua sendo o estranho elo entre a família e o assassinato de Marielle Franco. A Polícia Civil do Rio recebeu recentemente a informação de que o vereador teria se desfeito de um computador

6. Acabou a mamata pra quem? Piscou, não viu e o Senado aprovou a reforma da Previdência para os militares, que tramitava em projeto de lei separado da reforma dos trabalhadores e muito - muito - mais amena. Enquanto as novas regras gerais reduzirão R$ 97,3 bilhões na previdência, as mudanças na carreira dos militares trarão aumento de custo de R$ 86,85 bilhões para o Tesouro no mesmo período. O tempo mínimo de serviço subirá dos atuais 30 para 35 anos, mas a remuneração será igual ao último salário (integralidade), com os mesmos reajustes dos ativos (paridade). Já as contribuições referentes às pensões para cônjuge ou filhos, por exemplo, aumentarão dos atuais 7,5% da remuneração bruta para 9,5% em 2020 e 10,5% em 2021. Como não teve mudanças do texto aprovado na Câmara, da votação do Senado, o projeto segue direto para sanção presidencial.

7. A volta do engavetador-geral. Tratado com o moralismo tradicional da extrema-direita, o tema da corrupção foi o motor da ruptura institucional dos últimos anos e agora fica claro, como era previsto, que a indignação sempre foi seletiva. Passou o tempo do procurador-geral da República independente e ativo na luta contra corrupção. A onda agora é engavetar e Antônio Augusto Aras está fazendo exatamente o que se esperava dele. Cão de guarda de Bolsonaro, o procurador-geral se mostrou muito ativo na defesa do presidente nesta semana: pediu ao STF que rejeite uma queixa-crime que aponta obstrução de Justiça cometida por Bolsonaro no caso da morte da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, voltou a apresentar um parecer que defende o direito de o presidente bloquear usuários no Twitter e também se manifestou pela rejeição da queixa-crime apresentada pelo Greenpeace contra o ministro do Meio Ambiente por calúnia e difamação contra a entidade. Para finalizar, Aras manobrou a pedido da ministra Damares Alves para tirar do Conselho Nacional de Direitos Humanos a subprocuradora Deborah Duprat, que tem uma postura crítica ao governo e assumiria a presidência do órgão no ano que vem. O próprio Aras será o representante do Ministério Público Federal no órgão. Na sua ausência, o MPF será representando pelo secretário de Direitos Humanos da PGR, o ultraconservador Aílton Benedito. Para Thomas Traumann, os procuradores são parte da capacidade de Bolsonaro de controlar um “Estado profundo”, a burocracia que faz o governo andar. “É fato que muitos procuradores, policiais federais e auditores já eram bolsonaristas na campanha, mas é notável que continuem apoiadores fervorosos mesmo com sua independência funcional em risco”, escreve.

8. Ponto final: nossas recomendações de leitura

- O autoritarismo se torna ainda mais grave quando se institucionaliza e se conecta diretamente com o poder político, passa a ser um instrumento político do governo para aniquilar opositores, e a polícia se sente mais à vontade para matar, escreve Pedro Abramovai na Piauí. O novo autoritarismo vai gradualmente subindo sua temperatura até que a democracia morra calmamente, sem gritos ou baionetas. Já Tiago Amparo, na Folha, lembra que para os historicamente relegados ao papel de subalternos, o autoritarismo já chegou há tempos e que não há um Brasil que morre pisoteado e outro que lê sobre autoritarismo pelo jornal. Ambos são lados da mesma moeda

- A revista Cult e o Outras Palavras recapitulam de forma objetiva e direta o avanço das igrejas neopentecostais e sua fusão com projetos políticos na última década, combinando restrições morais com uma relação de troca com Deus,de acordo com os parâmetros estabelecido pelo mercado neoliberal, a teologia da prosperidade. A ação neopentecostal determina até o equilíbrio entre facções rivais nos presídios do Acre, como demonstra esta reportagem da Piauí.

- Jamil Chade, no UOL, radiografa a vida e a política na Hungria, um dos precursores entre os governos autoritários e alimentados por teorias conspiratórias e persecutórias. Ao mesmo tempo em que goza do apoio dos mais pobres, o governo de Vitor Orban estabeleceu um complexo domínio das outras instituições do país. Mas a reportagem também busca os sinais de resistência no país europeu.

- A ascensão de projetos autoritários de extrema-direita são combinações de intuição com a atuação calculada de “engenheiros de caos”, segundo o cientista político franco-italiano Giuliano Da Empoli, em entrevista para o Nexo. Para Empoli, a política construída por militância e consenso está sendo substituída pela ação nas redes sociais onde engajamento é o susto, o medo, o escândalo e a superexcitação permanentes, não importando se o conteúdo que circula é verdadeiro ou falso.

Obrigado pela leitura. Para você que chegou até aqui, não esqueça de recomendar a inscrição na newsletter aos seus contatos. Um abraço e até a semana que vem.

Edição: Aline Carrijo