O Dia Mundial de Combate à Aids é celebrado neste domingo (1), e o Brasil, que já foi considerado uma referência internacional pelo programa de tratamento e prevenção da doença, apresenta, atualmente, dados preocupantes e cortes em políticas públicas. Segundo o último balanço do Ministério da Saúde, nos últimos 10 anos, houve um aumento de 21% nos casos de pessoas com HIV/Aids no país.
As políticas públicas do governo atual de Jair Bolsonaro demonstram pouca preocupação com ações de prevenção. Houve precarização no Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), suspensão de kits de prevenção e cortes de canais de comunicação dedicados à divulgação do tema.
Para Mario Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP) que acompanha as políticas de combate à epidemia no país há mais de 30 anos, a resposta brasileira à Aids sempre dependeu, principalmente, de quatro pilares: a distribuição gratuita de medicamentos, bons serviços públicos e uma política baseada em evidências científicas e direitos humanos. Além desses, o pesquisador cita o trabalho das organizações não governamentais (ONGs) e a inclusão das populações mais vulneráveis na discussão e elaboração dessas políticas.
Scheffer acredita que, no momento atual do país, esses pilares estão sendo ameaçados. “O programa de combate à Aids foi concebido dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). No momento em que ele corre riscos -- e aí estou me referindo, por exemplo, ao acirramento do subfinanciamento público, o teto de gastos federais que irá incidir nos serviços públicos, inclusive nos serviços nos serviços que atendem HIV e Aids --, isso pode piorar ainda mais [os equipamentos] que já estão sucateados, lotados e com falta de médicos”, alerta.
A Emenda Constitucional Nº 95, conhecida como Emenda do Teto dos Gastos Públicos, à qual Scheffer se refere, determinou o congelamento de investimentos públicos do governo brasileiro com saúde e outras áreas sociais por 20 anos. A medida foi aprovada em 2016, durante o governo de Michel Temer.
Combate e prevenção
HIV é a sigla em inglês para vírus da imunodeficiência humana, o causador da Aids. Ter o vírus não significa desenvolver a doença, e muitas pessoas soropositivas podem ficar anos sem apresentar sintomas. Mesmo assim, elas podem transmitir o HIV ao ter relações sexuais sem proteção, compartilhar seringas contaminadas, por meio de transfusão com sangue contaminado e, no caso de gestantes e lactantes, da mãe para o filho caso não se tomem medidas preventivas.
Para Maria Clara Gianna, coordenadora do Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS-SP do Estado de São Paulo, as estratégias de combate à epidemia no país já obtiveram resultados extremamente positivos ao longo das últimas décadas e devem ser protegidas e valorizadas.
Como destaque, ela cita a redução de 16% de mortes decorrentes da Aids nos últimos dez anos e a extinção da transmissão do HIV de mãe para filho, alcançada no estado de São Paulo recentemente. A médica afirma que o programa de combate e prevenção da transmissão do vírus é histórico e deve ser tratado independentemente de mudanças de políticas de governo específicos.
“Essa organização [de políticas públicas de combate à Aids] ao longo do tempo foi uma organização de sucesso. Isso não pode se perder. É uma política de Estado, construída ao longo de três décadas, e que precisa se manter ao longo do tempo”, defende.
Populações mais vulneráveis
Apesar de ter conquistado grandes êxitos historicamente, a política de combate à Aids tem também fragilidades. Entre os destaques é a atenção específica às populações mais vulneráveis à infecção. Durante o governo Bolsonaro, as campanhas dirigidas a públicos específicos foram desconsideradas e canais de comunicação nas redes sociais que tratavam especificamente do tema foram extintos.
Para Gianna, entretanto, um dos principais aspectos do sucesso de políticas públicas de prevenção e tratamento está justamente em um promover uma comunicação que consiga chegar nas pessoas.
“Nunca podemos deixar de valorizar o trabalho com as populações mais vulneráveis: entre as trabalhadoras do sexo, travestis, mulheres trans, homens trans, homens que fazem sexo com homens. Porque eles são os maiores alvos. E [fazer isso] nas linguagens dessas populações. Chegando perto dessas pessoas”, afirma.
Esses são os grupos que apresentam uma prevalência maior da doença, mas não são os únicos grupos de risco. A aids pode afetar todas as pessoas, de todas as idades, raças, orientações sexuais e identidades de gênero.
Informação
Um exemplo de iniciativa que tem respondido a lacunas deixadas pela ausência de campanhas do governo para informar a população sobre HIV/Aids são canais criados nas redes por pessoas soropositivas, que compartilham informações e contam sobre o dia a dia de conviver com o vírus hoje no Brasil, com a proposta de desconstruir mitos e preconceitos.
O ator Drew Persí descobriu que era soropositivo em 2013. Depois de passar seis anos sem falar publicamente sobre o assunto, decidiu criar conteúdo específico sobre o tema em seu canal no YouTube.
“Eu comecei a sentir, a perceber que a falta de informação estava matando as pessoas. Que as pessoas precisavam de mais informação. Eu ouvia coisas e queria dizer ‘não é bem assim, as pessoas não são assim como você pensa’, mas eu não podia dizer, porque ainda não era público [que eu era soropositivo]. Foi então que decidi comprar essa briga. Se a gente quer derrubar esse estigma e quebrar esses tabus, a gente precisa de histórias reais, contando histórias reais”, afirma Persí.
A falta de informação dirigida e a necessidade de acolhimento adequado são motivos que atraem seguidores para o canal do ator. “[Na rede pública] estão distribuindo diagnóstico e mandando essas pessoas para casa, sem dizer que existe acompanhamento psicológico e esquecendo de dizer que vai ficar tudo bem”, critica.
Para ele, o diálogo precisa ser diferente, e as campanhas não podem se limitar ao mês de dezembro e ao carnaval, e serem esquecidas durante o resto do ano. “As campanhas que a gente vê são sempre pautadas com a mensagem ‘use camisinha’. Só. Hoje há tantas formas de prevenção que precisam ser discutidas”, destaca.
Mario Scheffer faz uma defesa no mesmo sentido. Para ele, é necessário, hoje, proporcionar uma nova mobilização da sociedade, com criatividade e novos formatos de comunicação, que desconstruam a ideia de que a epidemia está paralisada no país.
“O momento seria de tentar convencer parte da sociedade de que a aids continua sendo um seríssimo problema de saúde pública. O Brasil tem algumas ferramentas importantes, mas o que percebemos, até pela lentidão de respostas dos indicadores de controle da Aids, é que o país poderia reduzir muito mais o número de mortes”, afirma o professor.
Edição: Aline Scátola