Ouviu no meio do vento uma voz
Quando Zé da Cotinha morreu, muita gente chorou. Era um homem bom.
O enterro foi concorrido, com amigos e parentes comovidos. Até o Mané Marcelino, dono de uma venda na roça, tido como insensível para essas coisas, parecia muito abatido no cemitério.
E estava abatido mesmo, mas o motivo não era coisa de emoção, era que o finado lhe devia um dinheiro equivalente a uns mil reais de hoje. Logo que soube da morte do Zé ele foi falar com a viúva.
Dona Maria não renegou a dívida, ia pagar, mas o Mané tinha que esperar o inventário. Ficou inconformado, sabendo o tempo que isso demora na Justiça. Era essa a causa da sua cara sofrida.
Mas ele estava matutando um jeito de antecipar o recebimento.
Terminado o enterro, cada um procurou seu rumo e a dona Maria, chorosa, foi para sua casa. Queria ficar sozinha ali, onde viveu muitos anos com o Zé.
Anoiteceu sozinha na casa, que ficava a uns dez metros de distância do início de um capão de mato.
Lá pela meia-noite ela ainda estava acordada, quando ouviu no meio do vento uma voz que vinha aparentemente do matinho, mas com um sotaque igual ado do Mané Marcelino, que tinha a língua presa e pronunciava Jé e M’aria.
⸺ M’aria, ô M’aria... ⸺ gritava a voz tremida, ⸺ Aqui é o Jé... Eu tô no purgatório, M’aria... Shó entro no chéu quando pagá o cumpádi Mané, M’aria... Oxê tem que pagá ele, M’aria...
Isso se repetia a cada quinze ou vinte minutos, e durou a noite inteira.
No meio da manhã, a Maria foi à venda do Mané pagar o a dívida do marido.
O Mané estava todo sorridente, se achando esperto, mesmo diante da brabeza da mulher, que lhe jogava praga.
Ela puxou o dinheiro e falou:
⸺ Olha, Mané, taí o dinheiro. Num quero nunca mais ouvir a voz da assombração que escutei esta noite. Mas tenho certeza de que aquela voz não era de quem ia sair do purgatório pra ir pro céu, não. Era a voz de um excomungado que vai direto pro inferno. Mané. Vai pros quintos dos infernos, direto!
Fez cara mais braba ainda e imitou a voz do vendeiro:
⸺ O Jé e eu, M’aria, sabemos que era a voz de um esprito que não presta, M’ané. Um esprito lajarento.
O Mané não se importou. Mais tarde comentou com sua mulher:
⸺ A cumádi ficô braba... Me chamô de lajarento, mas funchonô, nhé... Me pagô.
Edição: Michele Carvalho