Para Joel Rufino dos Santos (1941-2015), mestre eterno, suave quilombola dos nossos tempos
Joaquim Nabuco (1849-1910), nascido na aristocracia, constatou: “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Escravidão, além de exploração brutal da mão de obra, é a negação do outro como pessoa, sua invisibilização. Durante um, dois, três, quatro séculos a escravidão vigorou oficialmente no Brasil. Aos negros escravizados eram “oferecidos” três pês: pão, pano e pau, pancada. Isso acabou?
Horrizamo-nos, com razão, diante do Holocausto dos judeus no século XX. Esquecemo-nos, ou o “currículo oculto” de nossas escolas esconde, do Holocausto e da Diáspora africana. África de diferentes culturas e nações que perdeu, entre escravizados e mortos, estimativamente, do século XV ao XIX, não seis, mas sessenta milhões de seres humanos.
Africanos sequestrados que, ao atravessar o Oceano Atlântico, recebiam, qual gado humano, “tatuagens” sangrentas de quem fazia o tráfico, da Coroa Portuguesa, da cruz de batizado, do seu comprador em terras brasílicas. Marcas indeléveis do terror brutal.
Na visão dos dominantes, a escravidão foi uma “necessidade econômica”, e colocar povos na condição de exploração total foi “natural”: eram as “peças de ébano”, os “fôlegos vivos”. As sequelas simbólicas da escravidão continuam. O atual presidente da República do Brasil afirmou que ela existiu “sem que os portugueses colocassem os pés na África”. Bolsonaro já se referiu aos moradores de quilombos como animais, medindo com “arrobas” seu peso. O vice Mourão já disse que “herdamos dos africanos a malandragem, a esperteza”. O preconceito e o racismo estão nas três instâncias do poder.
Na consciência dos dominados, a escravidão produziu uma estrutura psíquica de vassalagem, o senso comum de aceitação da opressão. Mas houve e há o senso crítico: os quilombolas foram fundamentais na resistência, ao longo dos séculos. Não formaram maioria: a repressão brutal inibia. Mas quilombos e capoeiras e cantos e rezas e pequenas vinganças contra feitores foram corroendo os metais e troncos pesados de argolas, ferros e pelourinhos. Onde há opressão há resistência!
Mês, semana, dia da Consciência Negra devem servir para refletir sobre a nossa africanidade. De cada um, uma. A cor da minha pele e o meu cabelo não negam: a África está no meu DNA, e tenho orgulho disso. Assim é com 80% do povo da raça Brasil, na feliz expressão do saudoso Fernando Brant (1946-2015).
Hoje me recordo sem traumas da infância do Gumex para alisar os caracóis do cabelo, que minha mãe considerava importante – sem muita convicção, é verdade – para a aceitação no meio da classe média. Lembro também o apelido futebolístico de “Tinteiro” – referência a um antigo lateral do Flamengo. Sentia-me honrado com a comparação.
Mas quantos dos nossos milhões de patrícios conseguem reconhecer ou ter reconhecida sua identidade étnica, cultural e ancestral? Os idiotas da “raça pura” ficariam frustrados com o povo que se constituiu no Brasil, mas ainda não são muitos os que resgatam ou valorizam essas origens lindamente africanizadas.
O 20 de novembro relembra a morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, após um século de resistência do Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, no atual estado de Alagoas. Palmares que chegou a reunir 50 mil libertos e a ter 1/3 do território de Portugal, a metrópole de então. Todos devíamos ser herdeiros da resistência à escravidão, mas há quem tenha cabeça senhorial, patriarcal e escravocrata, até hoje. As relações de classe são muito determinantes: as raízes do povo brasileiro não receberam solos iguais para se desenvolver.
Os nativos daqui, povos originários, têm uma história de interiorização e de defesa dos seus territórios, para sobreviver à dizimação. Os brancos europeus da conquista e colonização exerciam o poder de mando, ainda que houvesse pobres entre eles (para cá vieram também banidos e degredados). Os negros aqui entraram como escravos, sobre quem os senhores tinham direito de vida e morte. Reagiram de mil formas, em especial nos quilombos. Crescemos, portanto, como uma sociedade violenta, de expulsos de sua própria terra ou “desenraizados”. Aos trancos, tiros, torturas e barrancos, entre opressões e resistências, nos formamos como povo. “Um povo feito de povos desfeitos”, assinalava Darcy Ribeiro.
O passado entra no presente: continuamos a ser uma sociedade de casta política, de elite econômica, de cultura dominante. Há um racismo estrutural que se reflete no acesso à educação e à cultura, nas casas de representação eletiva, na hierarquia salarial, nos esportes, nas oportunidades de trabalho. Continuamos a ser uma sociedade de maiorias sociais que são minoria política, profundamente injusta e desigual, com extraordinária riqueza cultural desvalorizada. Caetano cantou bem em “Milagres do povo”: “quem descobriu o Brasil/ foi o negro que viu/ a crueldade bem de frente/ e produziu milagres de fé/ no extremo Ocidente”.
Somos um povo de incrível singularidade: criativo, musical, teimoso na vontade de viver. Somos um povo de muito sofrimento: a discriminação e o preconceito estão comprovados nas estatísticas. O Anuário da Segurança Pública informa que em 2018, comparado com o ano anterior, cresceu 27% o número de jovens até 22 anos mortos por policiais – quase 80% deles negros! A letalidade entre os policiais também aumentou 17,5%, sendo que 56% negros! Dos quase 13 milhões de desempregados do Brasil de hoje, oito milhões são negros, diz a PNAD. Como não enxergar racismo nesses trágicos percentuais?
A luta pela igualdade continua sendo decisiva. Igualdade a partir do reconhecimento de que, independentemente da cor da pele, das origens e da renda do trabalho (também aqui há defasagens absurdas!), todos somos rigorosamente iguais. Não de uma igualdade uniformizante, como a de soldadinhos de chumbo, mas a do igualitarismo na diversidade, na evidência das diferenças que, ao invés de nos afastar, enriquecem. Nosso desafio é construir estruturas que possibilitem realização de tod@s como seres humanos conscientes de sua dignidade e da dignidade dos outros. Para isso, a igualdade de oportunidades, negada cotidianamente, é um pré-requisito básico. E missão do Poder Público.
Façamos nosso, em reconhecimento e ação concreta, o clamor de Agostinho Neto (1922-1979), líder da independência e primeiro presidente da República Popular de Angola: “O oceano separou-me de mim enquanto fui me esquecendo nos séculos. João foi linchado, o irmão chicoteado nas costas nuas, a mulher amordaçada e o filho continuou ignorante. E do drama intenso de uma vida imensa e útil resultou certeza: as minhas mãos colocaram pedras nos alicerces do mundo, mereço o meu pedaço de pão!”
*Chico Alencar é professor, escritor e ex-deputado federal (PSOL/RJ)
Edição: Vivian Virissimo