A renúncia do presidente Evo Morales após pressão das Forças Armadas na Bolívia concretiza mais um golpe na América Latina. Em declaração ao povo boliviano, Evo explicou que a renúncia teve como propósito a pacificação no país em meio a protestos violentos. Especialistas têm afirmado que o ocorrido configura um golpe civil-militar.
Na avaliação de Sandra Quintela, integrante da coordenação América Latina e Caribe da Rede Jubileu Sul, por trás de todo golpe de Estado há interesses econômicos, por recursos naturais, fundos públicos, controle territorial. No Brasil, segundo a economista, o golpe contra Dilma Rousseff, em 2016, foi marcado sobretudo pelo interesse nas reservas de petróleo brasileiro.
Na Bolívia, quais as forças políticas e econômicas em torno do golpe e como esse cenário pode influenciar o Brasil? Leia a entrevista completa com Sandra Quintela, economista, educadora popular e integrante da coordenação América Latina e Caribe da Rede Jubileu Sul ao Programa Brasil de Fato RJ.
Brasil de Fato - O que está acontecendo na Bolívia é golpe?
Sandra Quintela - É golpe e de outro tipo. Viemos acompanhando golpes na América Latina e no Caribe desde 2004 no Haiti, 2009 em Honduras, 2012 no Paraguai, 2016 no Brasil e agora em 2019 na Bolívia e cada um desses golpes apresenta um perfil. Esse teve uma característica muito forte da presença policial e dos neopentecostais, e isso é uma novidade nessa onda de novos golpes que estão ocorrendo na região.
Quais as forças políticas em disputa?
Já há uma certa instabilidade política na Bolívia desde 2016 quando foi feito um referendo sobre a candidatura pela quarta vez de Evo Morales. O que não é nenhum problema. A Angela Merkel é primeira ministra na Alemanha desde 2005 e o Evo desde 2006, então não se trata de perpetuação infinita no poder.
O referendo não deu vitória ao Evo e ele recorreu ao Supremo Tribunal Eleitoral que reconheceu a possibilidade dela se re-candidatar. A partir daí foi iniciado um processo de tentativa de desestabilização do governo. Com as eleições, e a pequena diferença entre ele e o segundo colocado, o Evo já tinha concordado em convocar um segundo turno e chamar novas eleições.
Mas tudo isso não foi suficiente para um grupo liderado por Camacho que é de extrema-direita, fundamentalista e violento, que faz apologia à violência, algo muito parecido com o que estamos vivendo no Brasil. Não à toa eles entram no Palácio de governo em La Paz, armados, com a bandeira da Bolívia e a bíblia. Acho que essa invasão foi bastante simbólica do que significa esse golpe.
Além disso, sabemos que a maior reserva de gás na América Latina está na Bolívia e quase a tabela periódica inteira de metais. Uma série de elementos estão por trás do golpe que são os interesses por controle por recursos naturais. Também há nuances muito claras de racismo nas elites brancas bolivianas.
Há também uma questão econômica por trás do golpe?
Por trás dos golpes sempre há interesse econômico ou de grupos que querem hegemonizar o controle territorial, recursos naturais, fundos públicos. O golpe em Honduras foi para introdução do agronegócio em grande escala, hidrelétricas, a indústria do turismo. No caso do Paraguai ficou claro o dedo da Monsanto no golpe que tirou o presidente Lugo. E aqui no Brasil os interesses sobre a Petrobras, o petróleo e o pré-sal são fundamentais para a gente entender os alicerces do golpe em 2016
No caso da Bolívia, a região mais rica de Media Luna tem o agronegócio e já tentaram em 2008 um golpe. Só que havia mecanismos multilaterais como MERCOSUL, UNASUL [União de Nações Sul-Americanas], de governos democráticos que conseguiram frear a tentativa de golpe.
Quais os possíveis reflexos do golpe na Bolívia aqui no Brasil?
Nós brasileiros temos muita dificuldade de pensar a América Latina como parte orgânica e fundante do que é a nossa política, história, economia e sociedade nesse contexto mais amplo. As nossas histórias são muito similares. O que acontece em algum país da América Latina tem reflexo em toda região.
As políticas neoliberais priorizam os interesses privados, como destinar recursos do orçamento público para o capital privado, tirando do social, pagamento da dívida, privatizações. Nos anos 2000, a América Latina deu uma certa guinada com governos progressistas e isso deu um freio nas políticas duras do neoliberalismo porque tivemos políticas sociais que permitiram amenizar as consequências dessa desigualdade.
Isso se viveu na primeira década do século XXI, mas vivemos um retrocesso no último período com Macri na Argentina, tentativas de golpes na Venezuela, enfim. A segunda década foi de muita violência sobre a América Latina e Caribe.
De um lado há uma América em ebulição com Haiti, Panamá, Honduras, Equador com grandes manifestações contra o pacote do FMI, Chile em uma verdadeira rebelião e a Bolívia com golpe com características violentas.
Há uma questão ideológica de desestabilizar os governos de centro-esquerda e esquerda na América Latina porque o projeto político desse grupo que está nos governando é acabar com a esquerda. A situação na Bolívia pode se agravar e isso justificar um endurecimento maior de repressão dos aparatos policiais e de repressão maior daquele país. Pode significar também um apoio militar brasileiro a Bolívia, já que fazemos fronteira.
Pode acontecer também um cenário de legitimar cada vez mais um ambiente de impunidade. Esse ambiente que pode apontar o golpe na Bolívia também influencia esse ambiente de impunidade que nós já estamos vivendo no Brasil.
*Entrevista: Denise Viola
Edição: Vivian Virissimo