A Revolução Verde prometeu acabar com a fome, mas não o fez.
Em 2017, Issa Shivji deu a Palestra Memorial Harold Wolpe na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul. Issa, que lecionou na Universidade de Dar es Salaam por décadas, refletiu sobre a ideia de intelectuais revolucionários. Ele se lembrou de uma palestra proferida por Ali Mazrui 50 anos antes, na qual Mazrui definia um intelectual como alguém fascinado por ideias. “Até um palhaço é fascinado por ideias”, gritou um dos alunos.
É verdade.
Nos primeiros anos da República Soviética, Anatoly V. Lunacharsky – Comissário de Educação do Povo Soviético Bolchevique – escreveu um ensaio chamado “Nós riremos” (1920). O povo havia derrubado o czar e seu império, “um inimigo gigantesco”. Essa grande vitória teve que ser celebrada, mas “estamos enredados pelos miasmas da velha cultura que envenenam todo o nosso ar, enquanto esse inimigo ainda triunfa ao nosso redor, esperando o momento para infligir um novo golpe: desta vez, sem soltar de um lado nossas espadas, do outro teremos uma arma que já é afiada: o riso”, advertiu Lunacharsky. Há dois pontos importantes aqui: um, que os tentáculos da velha cultura ultrapassaram a corrente revolucionária e continuaram a tentar sufocar o progresso humano; dois, que o povo teve que responder com seu poder recém-encontrado, mas também com alegria, a energia que dá confiança às pessoas.
No mês passado, a equipe do Instituto Tricontinental e Pesquisa Social se reuniu na África do Sul, onde passamos uma semana elaborando nossa agenda, refinando nossa organização e assegurando que temos a energia do riso ao nosso lado. Nos últimos 22 meses, produzimos uma boa quantidade de materiais:
a. 89 Cartas semanais
b. 76 Retratos
c. 22 Dossiês
d. 4 Alertas Vermelhos
e. 2 Cadernos
f. 2 Documentos de trabalho
g. 1 Apontamento
Uma das grandes ideias de Lunacharsky é que os movimentos revolucionários lutam no domínio da cultura, pois é a rigidez das velhas hierarquias culturais que resiste às mudanças revolucionárias. É importante que os revolucionários aprimorem sua compreensão dessa rigidez e aprendam a superá-la, a rir do nosso caminho para um novo mundo. Grande parte da agenda do Instituto Tricontinental é estudar essa rigidez e as novas formações culturais que atraem os oprimidos e explorados. Entre elas estão os movimentos religiosos (das igrejas neopentecostais ao Tablighi Jamaat).
Esses novos atores varreram as instituições culturais da classe trabalhadora, criadas como parte dos movimentos sindicais e de esquerda. A classe trabalhadora, os desalentados, os pobres urbanos e os trabalhadores rurais deslocados tornam-se parte dessas novas formações, que oferecem recursos frequentemente reacionários, tendo o patriarcado em sua essência.
O ponto central de nossa agenda de pesquisa é estudar a estrutura e a consciência dessas classes-chave, observando a desarticulação da produção capitalista e a crescente fragmentação da cultura da classe trabalhadora e camponesa. Estamos interessados, portanto, nos ciclos de acumulação de capital e na construção da rigidez social e do conservadorismo.
Olivia Carolino Pires, economista do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, fala – em francês – sobre nosso trabalho, sobre o qual ela escreveu aqui.
O Dossier no. 22 (Novembro 2019) – Nuestra América latina e caribenha: entre a ofensiva neoliberal conservadora e as novas resistências – oferece uma visão do nosso plano de trabalho e dos três principais eixos da nossa agenda de pesquisa, na perspectiva do pensamento crítico latino-americano:
-
- A configuração contemporânea do imperialismo.
- Novos monstros e a ofensiva neoliberal-neofascista na América Latina.
- Desafios para reimaginar o futuro.
Esse dossiê é um convite ao diálogo. Estamos ansiosos para ouvi-los sobre nossa pesquisa, sobre como refinar nossos conceitos, e que nos ajudem a abrir nossa imaginação para o futuro.
Muitas vezes recebemos de vocês ofertas para ajudar em nossa pesquisa e em traduções. Esse trabalho de solidariedade é essencial para o modo como funcionamos. Até o momento, não pedimos nenhum apoio que não o trabalho solidário. Agora, em nosso site, você encontrará o botão “Faça uma doação” na parte inferior da página. Entre, contribua e compartilhe. Nenhum projeto coletivo como esse pode funcionar sem a sua participação.
Mudando de assunto…
M. Palani Kumar, P. Raniamma com sua colheita de marikozhunthu, uma variedade de alga comestível, 2019.
Palani Kumar é bolsista do Arquivo Popular da Índia Rural (PARI). Ele acaba de publicar uma matéria sobre as trabalhadoras que mergulham na costa de Tamil Nadu para coletar algas. Elas passam quase dez horas por dia dentro e fora das ondas, mergulhando no fundo do mar, coletando várias formas de algas marinhas, que vendem por uma ninharia para indústrias que as usam em uma variedade de produtos. Kumar usou uma câmera Nikon embrulhada em plástico para tirar fotos subaquáticas. Sem elas, é impossível imaginar essas mineiras do fundo do mar. O aumento do nível das águas do mar tornou o trabalho muito mais difícil para elas e também significou um rendimento menor.
Essas mulheres – A. Mookupori, P. Raniamma, S. Amritham – fornecem a matéria-prima para uma cadeia de valor que vai do fundo do mar até o supermercado. Seu trabalho audacioso – como os “mineiros artesanais” das minas de cobalto da República Democrática do Congo – é o mais perigoso e o menos valorizado, e agora está sob imensa pressão com o aumento do nível das águas do mar.
Falando nisso…
O PARI foi fundado pelo pesquisador sênior do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, P. Sainath, que também assina nosso Dossiê n. 21 – O ataque neoliberal à Índia rural (outubro de 2019) que traz duas reportagens: uma sobre a desertificação em Andhra Pradesh e outra sobre uma cooperativa de mulheres em Kerala.
Matheus Gringo – do escritório da Tricontinental no Brasil explica os principais pontos do dossiê 21.
Partindo da experiência de Kerala, Sainath oferece um programa rápido de três pontos para reverter a calamidade agrária:
-
- A agricultura deve ser agroecológica em sua abordagem, o que influencia na escolha do local para a agricultura e na escolha do cultivo. O café não deve ser cultivado no Alasca e a cana-de-açúcar não deve ser cultivada em Marathwada. As culturas nativas devem ser aproveitadas e cultivadas. Devemos nos dedicar às culturas perenes e àquelas que requerem apenas pesticidas orgânicos e fertilizantes.
- A agricultura deve ser desindustrializada no sentido de não utilizar produtos químicos tóxicos e sementes perigosamente modificadas geneticamente (transgênicas).
- A reforma agrária é essencial, sobretudo a que cria cooperativas e coletivização. A agricultura pertence às comunidades, não às corporações.
M. Palani Kumar, Taking the boat to sea [Levando o barco para o mar], 2019.
Já que o assunto é agricultura…
No mês passado, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) divulgou um importante relatório chamado A Economia Global de Leguminosas (leguminosas são um tipo de legume, como feijão e lentilha). O relatório foi co-editado por Dorian Kalamvrezos Navarro, Assessor de programa do estatístico chefe da FAO, e Vikas Rawal, professor de economia na Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Déli. Vikas é um companheiro essencial no trabalho do escritório indiano da Tricontinental. Existem várias descobertas importantes no relatório, mas quero enfatizar o seguinte:
a. Leguminosas são ricas em proteínas e minerais, possuem alto teor de fibras, baixo teor de gordura e pouco colesterol. O consumo de leguminosas está associado a benefícios significativos à saúde e melhores resultados nutricionais.
b. O consumo per capita de leguminosas estagnou nas últimas três décadas.
c. A Índia é o maior produtor de leguminosas, embora tenha havido um crescimento da produção de leguminosas orientada para a exportação em larga escala no Canadá, Estados Unidos e Austrália. As fazendas de pequenos agricultores continuam sendo responsáveis pela maior parte da produção de leguminosas.
d. Fazendas de pequenos agricultores no sul da Ásia e na África subsaariana lutam com baixos rendimentos; é necessária uma maior adoção de variedades melhoradas e práticas agronômicas modernas.
e. Tornar a produção de leguminosas de pequenos produtores lucrativa e menos arriscada requer um grande impulso da pesquisa agrícola pública, além de melhorar a disponibilidade de crédito, principalmente por meio de investimentos públicos.
E quais seriam as bases de uma revolução agrícola?
A Revolução Verde prometeu acabar com a fome, mas não o fez; exacerbou as desigualdades no campo, em grande parte porque defendia uma revolução meramente tecnológica e não social na agricultura. Os defensores da abordagem tecnológica diriam: “preferimos uma Revolução Verde a uma Revolução Vermelha”. A tecnologia é importante, sem dúvida; mas o foco principal deve estar na transformação das relações sociais de produção – nas reformas agrárias, em uma melhor organização de recursos para a agricultura, em uma maneira melhor de os alimentos chegarem às pessoas.
Amelia Peláez, Fishes [Peixes], 1943.
Alimento não é mercadoria
Um indicador do fracasso do capitalismo em gerenciar a produção de alimentos é que, segundo a FAO, um terço da produção global de alimentos (1,3 bilhão de toneladas por ano) é perdida ou é desperdiçada. A FAO desenvolveu novos índices – o Índice de Perda de Alimentos e o Índice de Desperdício de Alimentos – para acompanhar essa abominação. “Como podemos permitir que os alimentos sejam jogados fora quando mais de 820 milhões de pessoas no mundo continuam passando fome todos os dias?”, perguntou o diretor-geral da FAO, Qu Dongyu.
Nós permitimos isso porque o sistema diz que apenas quem tem dinheiro pode comer. O nome do sistema é capitalismo. É desumano em sua essência e nos sufoca o riso.
Edição: Katarine Flor