“A verdade vos fará livre”. Este é o tema do samba-enredo que a Estação Primeira de Mangueira vai levar no Carnaval de 2020. A temática desenvolvida pelo carnavalesco Leandro Vieira trata de uma leitura crítica da biografia de Jesus e reafirma o compromisso da escola com as pautas sociais do Rio de Janeiro. Vale lembrar que neste ano, a Mangueira conquistou seu vigésimo título com o enredo “História pra ninar gente grande”.
E além do carnavalesco Leandro Vieira, outro nome que volta à Avenida em 2020 – e desta vez com o devido destaque – é o de Manuela Oiticica, a Manu da Cuíca. Ela é compositora do samba eleito para 2020, junto com Luiz Carlos Máximo, e concedeu entrevista ao Programa Brasil de Fato RJ.
Brasil de Fato – Quais as curiosidade do processo de criação deste samba?
Manu da Cuíca – Compositor sempre gosta de falar sobre como as coisas vem. Junto com o Luiz Carlos Máximo, meu parceiro e companheiro também, a gente faz da seguinte forma: lê a sinopse e faz pesquisas para tentar achar uma embocadura, que é a parte mais difícil. Ainda mais um tema tão desafiador como esse proposto pelo Leandro Vieira, “A verdade vos fará livre”, trazendo Jesus Cristo a partir da sua própria história, mas que é tão desvirtuada. A gente demorou, mas conseguiu definir que seria um samba em primeira pessoa, por entender que esse Jesus revivido hoje, seria pobre, morador de favela. Queríamos que as pessoas tivessem esse pertencimento da mensagem que Jesus passou, para além de qualquer religião, de fraternidade e partilha.
Tem um trecho da música que diz: "Eu tô que tô dependurado em cordéis e corcovados, mas será que todo o povo entendeu o meu recado?"...
Cristo seria o primeiro a defender e a brigar pela diversidade religiosa, liberdade de pensamento, crenças, defesa de toda pluralidade que tem numa sociedade. Acho que discursos de intolerância religiosas não são condizentes com princípios básicos de qualquer religião que pregam certa comunhão, fraternidade, coletividade, respeito. Ter intolerância praticada de forma religiosa, política e individual é extremamente contraditório para ensinamentos de qualquer religião. O enredo da Mangueira vem recuperar isso, a essência do que seria essa palavra da partilha, do afeto, da comunhão, que é viver em coletividade, o que tem sido bastante difícil nos últimos tempos.
As escolas de samba estão assumindo compromissos sociais e comprando certas brigas com determinados setores da sociedade, como você vê e a que se deve isso?
Não é uma particularidade nem da Mangueira, nem das escolas de samba, tem outras escolas com os chamados enredos críticos. Não é a abordagem majoritária, mas é muito comum que em momentos da história as escolas de samba estejam nessa voz mais crítica. Afinal não há muita gente que está plenamente satisfeita com o país e a arte acaba sendo o lugar para colocar as contradições sociais, a arte existe também para isso. Trazer para o universo da arte as tensões sociais, seja ela quais forem, é um movimento social e histórico. Em momentos de mais fissuras isso fica mais evidente.
É uma forma de dialogar com o povo que está na arquibancada...
Sem dúvida. Não podemos perder de vista que a ideia do engajamento, de trazer para arte as fissuras sociais, ter posturas críticas, e portanto percepções políticas, uma vez que vivemos em sociedade, isso não pode ser simplificado com qualquer tipo de Fla-Flu, rixas menores por conta de questões de partidos ou não. Ou seja, não pode deixar isso rasteiro, do ambiente político para dentro dessa discussão artística. Tem que ser acima de tudo uma obra de arte. Uma escola de samba feita pelo povo, como é feita, isso não pode nunca ser sequestrado para nenhum outro campo.
Qual caminho até se tornar uma compositora?
Eu não tenho músicos no meu núcleo familiar mais direto, mas eu tenho uma família de muito interesse e sensibilidade musical ligado ao carnaval como folião. Tive contato com escola de samba, minha mãe foi auxiliar de comissão de frente, até vitoriosos, na Imperatriz, trabalhei com ela em alas coreografadas, ia sempre a blocos de carnaval, minha vó sempre cantou marchinhas, aquela da dona Pepita, da piada de salão. Músicas de carnaval sempre estiveram presentes. Também ia a Sapucaí com meu pai, lembro de toda aquela grandiosidade.
Sou percussionista, comecei a frequentar rodas de samba num momento que não tinham tantas como tem hoje. Comecei a entender que a Lapa era muito mais legal que qualquer outra coisa. Frequentava o Bar do Cláudio, antes da chamada retomada da Lapa. Até que eu conheci o lugar de formação não só como compositora, mas como pessoa e militante, que é o Bip Bip, um bar em Copacabana, do saudoso Alfredinho, mangueirense e cristão, que nos deixou no carnaval deste ano, no dia do desfile da Mangueira. Sim, ele fez essa pegadinha com a gente. E lá aprendi a tocar pandeiro, migrei para a cuíca, aprendi outros instrumentos, comecei a ver de perto os compositores. Como sempre escrevi, comecei a tomar coragem, buscar parceiros, começar a fazer letra para a música, não faço nunca a parte musical, deixo para quem sabe. Fazer letra já dá muito trabalho.
Disputei samba para bloco de carnaval, ano passado fizemos com outros parceiros o samba para o Simpatia é Quase Amor, falava do prefeito Marcelo Crivella, e daí para escola de samba... Apesar da escola de samba hoje ter perdido o contato com os outros universos de samba, pois não é tão comum ver pessoas que participam de rodas de samba ou mesmo de blocos de carnaval nas escolas de samba, elas se dissociaram um pouco, essa não era uma realidade na década de 1970, era um pouco mais próximo. Acho que o tamanho que ela foi ganhando, os números no qual ela foi envolvida, a ideia de ser um grande evento distanciou um pouco das outras manifestações do samba, que são mais artesanais, menos grandiosas nesse sentido, não no sentido artístico. Enfim, pude começar a disputar samba com esse modelo de disputa apresentado pela Mangueira. Acho que já teria disputado antes se o modelo atual já tivesse sido adotado no passado.
*Entrevista: Denise Viola
Edição: Vivian Virissimo