As armadilhas para atrair jovens sob a cortina de fumaça da liberdade de escolha
Sinopse de uma tragédia urbana em três atos.
Protagonista: Souza Cruz, a maior fabricante de cigarros no Brasil.
Objetivo: criar novos dependentes químicos.
Alvo prioritário: jovens.
Legalidade da iniciativa: duvidosa. Possível transgressão de leis.
Elenco: um herói-vítima, agência de eventos, agência de publicidade, DJs, influencers e youtubers, estes últimos trabalhando em troca de presentes ou dinheiro.
Ato I – O herói é capturado
Ou... Fisgando a vítima em uma festa de fachada
O garoto veste a melhor roupa, ajeita a gola da camisa e sai pela porta do apartamento. Irá a uma balada, conduzida pelo melhor DJ da cidade.
Será uma grande festa. A youtuber mais popular da região estará presente e dará autógrafos.
A mãe do garoto dá as recomendações de praxe. Ele entra no elevador e a porta se fecha.
O garoto agora está em frente ao local da festa. A rua é segura e iluminada. Tudo parece perfeito. Música boa, música alta, pessoas bonitas.
Beijos, olhares, alegria, sedução, desejos.
O garoto não se dá conta do que vai acontecer. A balada é uma armadilha.
O garoto é levado para dentro por um casal da idade dele. O primeiro passo está dado: criar estratégias para atrair o jovem e colocá-lo em um contexto de aceitação.
Fim do primeiro ato.
Ato II – O herói enfrenta terríveis dilemas
Ou.... Criando laços de amizade e pertencimento
O garoto é recebido como honras de celebridade. “Só faltava você para a noite estar perfeita”. O DJ acena do palco.
A youtuber mais famosa da região o recebe com um abraço. Sinaliza para que vá até o balcão conhecer produtos exclusivos: “você acaba de ser escolhido para receber um kit com diversos brindes, vai lá”, diz ela.
O que eu fiz para ser tão amado? – pensa o jovem.
Toda essa encenação gira em torno de um elemento central: o display de cigarros sobre o balcão, o maço de cigarros na sacola de brindes, as hashtags sutis criadas pela indústria de cigarros para fazer propaganda disfarçada e criar um público cativo.
O influenciador digital que acabou de chegar à festa quer abraçar a todos e tirar selfies. “Você posta essa foto no Instagram com #tastethecity e vai concorrer a brindes na próxima festa”, diz o influencer.
O garoto ainda não sabe, mas nas baladas-armadilhas financiadas pela Souza Cruz, com DJs, youtubers e influencers pagos pela empresa, tudo gira em torno de hashtags sutis, criadas pela Sousa Cruz para formar redes e influenciar jovens a fumar. A hashtag é o ponto de contato com potenciais novos fumantes e com potenciais novos públicos para as baladas.
“Vem comigo fumar um cigarro que eu quero te contar o que estou pensando para a próxima festa, diz o influencer”.
O garoto ainda não sabe, mas o principal objetivo da Souza Cruz é torná-lo o mais novo dependente químico da balada. A empresa quer um cliente que ficará décadas preso ao seu lado.
É assim mesmo: assédio sem pudores. Não importa se o cigarro é de papel ou eletrônico. O que importa é que o garoto comece a fumar, sob a falsa cortina de fumaça da “liberdade de escolha”. Há hashtags também para a liberdade de escolha, aos montes, patrocinadas pela indústria do tabaco.
O garoto caminha com um grupo de novos amigos até a área da festa que fica ao ar livre, onde é permitido fumar.
Fim do segundo ato.
Ato III – O herói em jornada para a morte
Ou.... Assédio moral objetivando gerar dependência química
Na área descoberta, pessoas riem, conversam, beijam. E fumam.
O garoto está feliz por pertencer à tribo.
Ele não sabe se um dia vai fumar. A decisão é dele, só dele. É livre para escolher.
É livre para fazer o que quiser, desde que faça a coisa certa: algo que o identifique com o grupo ao qual quer pertencer.
O influencer acende um cigarro e dá uma longa tragada.
Fade out.
Fim do terceiro ato.
Epílogo
Fade in.
O herói está com 45 anos de idade, sentado em frente a um homem de avental branco:
- Você está com câncer de pulmão. O tratamento é caro, doloroso e pode te matar. A probabilidade de morte é alta.
O herói pensa: nada como ser livre para fazer minhas próprias escolhas.
FIM
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Moral da história
Essa história não tem moral. São apenas negócios.
A Souza Cruz não vende cigarro. Vende valores, ideais. É o que o garoto compra pelo valor de face. Mas não é o que ele leva.
O cigarro é brinde.
O blend? O que tem o blend? Gota de prazer que o fez feliz e pertencente a uma tribo? O que mais ele pode querer?
O que é liberdade?
Queres agora o conforto hipócrita das palavras de arrependimento?
Créditos
O relato acima foi inspirado em uma palestra da Professora Dra. Maribel Carvalho Suarez (COPPEAD/UFRJ), proferida no “Workshop em jornalismo investigativo com foco em controle do tabaco”, realizado em São Paulo por ACT, Abraji, O Joio e o Trigo e Campaign Tobacco-Free Kids.
Edição: João Paulo Soares