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Artigo | A internet das vacas

A proposta é de uma agricultura sem agricultores, industrializada da semente ao prato ou ao copo de leite

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Chips interativos direcionam o gado para a ordenha no momento certo, conectados a um sistema de ordenha automatizado instalado previamente
Chips interativos direcionam o gado para a ordenha no momento certo, conectados a um sistema de ordenha automatizado instalado previamente - Foto: Pablo Porciuncula Brune / AFP

As novas tecnologias digitais no campo almejam “um projeto de agricultura sem agricultores e com alto uso de agrotóxicos e sementes patenteados, visando a expansão de empresas (muitas nem sequer agrícolas). Um projeto onde, da semente ao prato, o controle conte com uma cadeia de transnacionais que não deixará qualquer opção real de decisão para os agricultores, afastará mais ainda os consumidores, ameaçando ao mesmo tempo os territórios de produção camponesa, que são os que realmente alimentam a maioria”, escreve Silvia Ribeiro, pesquisadora do Grupo ETC, em artigo publicado por La Jornada e reproduzido por Rebelión, 19-09-2019. A tradução é do Cepat.

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Pode parecer brincadeira, mas é real. É mais um aspecto da invasão das tecnologias digitais na agricultura e na alimentação, que propõe uma agricultura sem agricultores, industrializada da semente ao prato ou ao copo de leite e controlada por grandes empresas do agronegócio, máquinas e computadores. Também um negócio a mais para as telecomunicações. A Telcel, por exemplo, a promove em seu site como parte da chamada Internet das Coisas, na qual o objetivo é aumentar exponencialmente os dispositivos conectados à Internet na vida cotidiana, de indústrias a residências, que interagem entre si e com nossos aparelhos.

Empresas como IBM, Cisco e Huawei oferecem pacotes de tecnologia para a Internet das vacas. São dispositivos digitais (coleiras e/ou chips) colocados em cada vaca para medir seu pulso, temperatura, pico de fertilidade e outras condições de saúde relacionadas ao sistema digestivo. Os dados são transmitidos pela Internet a uma nuvem das próprias empresas, que os armazena em grandes sistemas de dados (big data), analisa-os com inteligência artificial e envia os avisos que o programa considera pertinentes a um computador ou telefone da empresa agrícola ou fazenda.

Também existem chips interativos que podem direcionar o gado para a ordenha no momento certo, conectados a um sistema de ordenha automatizado instalado previamente para se adequar à vaca em questão. Cada dispositivo está associado a uma vaca em particular.

Há uma década existem sistemas de satélite para monitorar o gado em certas áreas. A diferença agora é que a coleta de antecedentes é muito mais ampla, os dados são sobre cada animal e todas as informações vão para uma nuvem dessas empresas ou, de acordo com os contratos, podem ser nuvens compartilhadas da Bayer-Monsanto ou de maquinaria agrícola como John Deere.

Há também Internet dos porcos e ovelhas com bases semelhantes. A ideia não é que o processo termine em cada fazenda, mas que o monitoramento siga cada animal individualmente, em transações de gado a pé, através do uso de sistemas blockchain e pagamentos com criptomoedas e que, em seguida, os acompanhe até o matadouro e em cadeias de certificação que incluem rastreamento do processamento, varejo e até nossa geladeira, supostamente dando a ilusão de que saberemos mais sobre o que consumimos, quando, na realidade, é o contrário. É um sistema para que haja ainda mais separação entre produtores e consumidores.

Tanto a IBM como a Microsoft possuem sistemas digitais avançados que abarcam toda a produção agropecuária de uma fazenda ou estabelecimento rural. O pacote que a Microsoft apresentou no México, em meados deste ano, oferece um sistema de monitoramento permanente das condições do solo, umidade e água, estado das plantações (se elas precisam de irrigação, se houver doenças, pragas etc.), dados climáticos, dados do tempo (direção do vento, chuvas, etc.), para avisar pela nuvem da Microsoft quando e onde semear, aplicar irrigação, fertilizantes ou agrotóxicos, quando colher, etc.

Para resolver a questão da conectividade rural, elemento-chave do sistema, mas que falta nas áreas rurais, a Microsoft usará os espaços brancos da TV, que são bandas de televisão fora de uso. Isso permite instalar um roteador de Internet em cada propriedade, conectando sensores, drones, chips, telefones e computadores com a rede eletrônica - que com este sistema atinge um raio de vários quilômetros - para enviar as informações para a nuvem da empresa.

As maiores empresas do agronegócio, como Bayer-Monsanto, Syngenta, Corteva (fusão da Dow-DuPont) e Basf, possuem divisões digitais com projetos desse tipo. Desde 2012, contam com diversos acordos de colaboração ou companhias conjuntas com as maiores empresas de máquinas (John Deere, AGCO, CNH, Kubota) em sistemas de big data, nuvens para armazenamento e computação e empresas de drones. Por exemplo, Precision Hawk, Raven, Sentera e Agribotix são empresas criadas em colaboração entre as multinacionais de sementes-agrotóxicos e máquinas.

Cada propriedade conectada fornecerá uma grande quantidade de dados que serão apropriados pelas empresas. Na medida em que esse sistema avançar, obterão mapas de recursos, solos, água, florestas, minerais, biodiversidade e regiões inteiras, o que lhes permitirá visualizar e negociar projetos muito além de cada fazenda ou vender as informações para empresas, como mineradoras e outras.

Novamente, assim como ocorre com os transgênicos, as empresas alegam que esta digitalização da agricultura e da alimentação é para prover uma crescente população mundial e aumentar a produção. Na realidade, trata-se de um projeto de agricultura sem agricultores e com alto uso de agrotóxicos e sementes patenteados, visando a expansão de empresas (muitas nem sequer agrícolas). Um projeto onde, da semente ao prato, o controle conte com uma cadeia de transnacionais que não deixará qualquer opção real de decisão para os agricultores, afastará mais ainda os consumidores, ameaçando ao mesmo tempo os territórios de produção camponesa, que são os que realmente alimentam a maioria.

Edição: Brasil de Fato