Diante da abertura de possibilidades que a narrativa de Bacurau sugere, intencionalmente, ao seu público, o longa tem sido classificado, no Brasil e mundo afora, como distópico, western e ficção científica. Isto para os que “não entenderam” que o filme cria sua própria intertextualidade, a partir de referências diversas, e, sobretudo, genuinamente brasileiras - uma das principais marcas, inclusive, da produção de Kleber e Juliano. Fugindo, forasteiramente, de diálogos expositivos ao público desfamiliarizado, Bacurau assume forma de lupa potente e empoeirada, permitindo-nos enxergar a realidade sob diferentes perspectivas e, promovendo, assim, inúmeros debates entre os que o assistem.
Primeiramente, precisamos lembrar que o filme se trata de uma obra, acima de tudo, de “arte”, cujo objetivo também é semear utopias e levantar um campo de discussão (e que campo!) capaz de buscar respostas para a transformação social.
Em razão de sua narrativa vaga, o filme tem recebido inúmeras críticas e vem sendo apontado, em várias delas, como incentivador da violência, ou, ainda, da segregação das unidades federativas – em diferentes níveis, entre outras coisas. Não se trata disso. Bacurau versa sobre desigualdades, opressão, pertencimento e revolução.
Finalmente, é chegada a hora da genial desforra nordestina. A carapuça serviu para os sudestinos, serviu demais. O bullying sofrido ao longo da nossa história é latente, e, infelizmente, ainda não ocupa apenas uma moldura velha na parede do museu do pequeno povoado perdido no mapa.
A violência em Bacurau não é glamourizada, contrariamente a opinião do célebre historiador Muniz, em sua análise sobre a obra. A qual evidencia, por sua vez, uma escrita pautada na moral burguesa, mostrando-nos que mesmo os que se encontram em um espectro político mais alinhado à esquerda não estão imunes ao negacionismo da luta de classes.
Desse modo, interpretar o fato do povo de Bacurau, duramente silenciado, oprimido e excluído - metáfora nua e crua das minorias no cenário atual, reagir com as armas do inimigo; como uma forma de promoção da violência, sugere uma ingenuidade e injustiça sem precedentes. Para compreender isso: “vocês vieram ver o museu?”, uma breve visita ao passado – seja a década de 80, seja ao período A.C – assegura um distanciamento deste tipo de atrapalho interpretativo.
Há quem diga que Bacurau é uma aula de resiliência, isto, pois, dentro do pouco que detém, há: uma igreja sem padres, um museu cuidadosamente protegido (e motivo de orgulho para a população), um cabaré e uma escola- com a figura de um sábio professor e uma das melhores bibliotecas da região. Quanto simbolismo! Quantas lições! Na cidade, os cidadãos “gente” formam o corpo social – sendo a coletividade o personagem principal da trama- a qual se auto-organiza para reagir, motivados pela necessidade de coesão e pelo estado de anomia que os acomete. A partir disso, na perspectiva do funcionalismo de Durkheim, o entendimento dos acontecimentos não deve perpassar pelo valor moral, mas sim pelo valor social que esse fato vai acarretar na busca do equilíbrio das partes que compõe a sociedade.
Diante do que foi exposto, o que me estarrece, após sucessivas visitas ao cinema, extensos debates e leituras de críticas favoráveis e odiosas ao filme, é: como uma cena de 20 segundos com um bacamarte pode ser mais chocante do que 2 horas de exposição torturante do caráter adoecido das nossas instituições e do nosso povo? Como uma cena de violência algoz e explícita se sobressai sobre o descaso enfurecido com as nossas vidas (humanas e não) vendidas e gozadas pelos interesses de outrem?
Idealmente, norteados pelos valores cristãos, tendemos a acreditar que a não violência é a melhor alternativa, ou ao menos, a mais civilizada resposta aos opressores. Contudo, ao término da oração, o despertar nos impele a abrir os olhos e encarar a política de genocídio que nos é incutida goela abaixo todos os dias. “Com quantos quilos de medo se faz uma tradição?” A covardia não é uma alternativa para Bacurau, frente a um cenário de necropolítica que os assola, tampouco deveria ser para nós. Saio do cinema nauseada e desejosa que a nossa ingenuidade encontre inspiração na cena de boas-vindas de Domingas ao estrangeiro: forte e corajosa. Nesta, inclusive, só mudaria a trilha. Teria escolhido "Todos Juntos" do álbum Saltimbancos, afinal, bacurau é pássaro brabo, e se alguém tem que morrer, que sejam eles.
*Helena Popineau é servidora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e militante das Amélias.
Edição: Isadora Morena