O número de focos de incêndios em territórios indígenas no Brasil quase dobrou entre os meses de janeiro e agosto de 2019, em comparação com o mesmo período do ano passado. O aumento registrado foi de 88%, segundo levantamento realizado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) divulgado esta semana.
As informações foram levantadas a partir de dados do Instituto de Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). O indicador aponta que o total de ocorrências registradas nesses territórios é ainda maior do que o crescimento dos focos de calor registrado no país, que nesse mesmo período subiu 71%.
A Terra Indígena Krahô Kanela, localizada no município de Lagoa da Confusão, em Tocantins, é uma das mais afetadas por queimadas. Lideranças locais afirmam que cerca de 95% da área já foi consumida pelo fogo. Segundo o Cimi, a situação se agravou nas últimas semanas, quando 31 focos foram registrados, apenas entre os dias 1º e 9 de setembro.
O líder indígena Wagner Krahô Kanela relata que o combate ao fogo é realizado com o apoio de brigadas locais, e que o cenário no território é de devastação.
“Desde o dia 26 de agosto que o nosso território está queimando. Até hoje a gente está tentando combater [o fogo]. Vieram as brigadas Javaé, Karajá e Xerente, que ajudaram muito. Estamos achando que agora vai acabar. É muito triste. A gente viu até jacaré queimado. Destruição total da natureza e do meio ambiente”, lamentou.
As queimadas na Floresta Amazônica, como afirmam especialistas, não são naturais e estão relacionadas ao desmonte de políticas ambientais pelo governo e ao discurso antiambientalista do presidente Jair Bolsonaro (PSL).
Entre janeiro e agosto de 2019, 9.078 focos de incêndio foram registrados em terras indígenas. No mesmo período de 2018, as reservas registraram 4.827 ocorrências.
O secretário-executivo do Cimi, Cleber César Buzatto, diz que os dados são muito preocupantes e refletem os interesses de grupos econômicos em relação à exploração das áreas.
“O alcance e a extensão do que vem ocorrendo são indicativos muito fortes de que as queimadas são provocadas por ação humana, por grupos econômicos que têm interesse nas terras indígenas, seja para exploração agropecuária, agropastoril ou mineral.”
Ele também ressalta que há influência do governo nessas ações.
“Sabemos também que há muito interesse do capital internacional e um conluio com o governo federal em relação a essa perspectiva da exploração das terras indígenas para fins comerciais, retirando desses povos o direito de usufruto exclusivo”, avalia.
Aliado a interesses econômicos, Buzatto acrescenta que o desmonte de órgãos de fiscalização ambiental e de proteção aos territórios indígenas também são fatores que colaboram com o aumento dos índices de incêndios nas reservas.
“[A situação] também é consequência de ações administrativas de estrangulamento dos órgãos ambientais e do próprio órgão indigenista, que estão sem nenhuma capacidade operacional e amordaçados politicamente, ao ponto que suas responsabilidades institucionais e constitucionais de defesa e proteção desses territórios não estão sendo cumpridas”, completa.
Além do aumento do número total de focos, a quantidade de territórios atingidos também aumentou, passando de 231 terras indígenas, em 2018, para 274, em 2019 – um aumento de 18,6%. As reservas estão localizadas em oito estados: Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Roraima e Tocantins.
“Dia do Fogo”
O levantamento do Cimi mostra ainda que mais da metade dos focos de incêndio identificados em terras indígenas neste ano foram registrados no mês de agosto, com 4.754 ocorrências.
A comparação com o mesmo período de 2018 é ainda mais assustadora: o aumento foi de 133,5% de um ano para outro. Em agosto do ano passado, os registros apontam 2.036 focos de queimadas nesses territórios.
O período mais crítico coincide com a ação criminosa promovida por fazendeiros às margens da BR-163, no Pará, que ficou conhecido como “Dia do Fogo”.
Na ocasião, segundo o jornal local Folha do Progresso, ruralistas relataram que a intenção do ato era “mostrar para o presidente que queremos trabalhar e único jeito é derrubando. E para formar e limpar nossas pastagens, é com fogo”, conforme afirmou ao jornal um dos organizadores da manifestação.
A devastação dessas áreas, como explica Buzatto, compromete a sobrevivência e, consequentemente, a permanência dos povos originários nesses locais.
“Prejudica muito a parte financeira, econômica, a subsistência e a soberania alimentar desses povos e acaba desestimulando sua presença nessas áreas. Por isso a importância do apoio e da solidariedade para que eles permaneçam, uma vez que o interesse dos grandes grupos econômicos é que eles abandonem [o território] para que sejam explorados pelas forças do capital”, reitera.
Encaminhamentos
Diante dos dados levantados, o Cimi informou que vai denunciar a situação dos povos indígenas em instâncias nacionais e internacionais.
Segundo Cléber Buzatto, as denúncias serão levadas à Organização dos Estados Americanos (OEA) e à Organização das Nações Unidas (ONU).
“Entendemos que as autoridades que não estão cumprindo suas responsabilidades podem ser denunciados por crimes administrativos. Estamos fazendo um esforço de recolher essas informações e protocolá-las em todos os órgãos para demonstrar que se não fizeram [algo], não foi por falta de informação, já preparando elementos para eventuais processos judiciais”, conclui Buzatto.
Os dados
O levantamento dos focos de queimadas em terras indígenas foi realizado a partir dos dados registrados pelo satélite Aqua/Tarde, da Nasa, cujas medições são a referência utilizada pelo Programa Queimadas, do INPE.
Para chegar aos resultados, o Cimi cruzou as informações disponibilizadas pelo INPE com dados cartográficos de terras indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai).
O Brasil de Fato cobrou ao Ministério do Meio Ambiente e à Funai um posicionamento sobre o aumento das queimadas nos territórios indígenas. Mas não houve retorno até o fechamento da reportagem.
Edição: Camila Salmazio