Recentemente, o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella publicou um vídeo em uma rede social oficial da prefeitura informando que determinara que uma HQ vendida na Bienal do Livro fosse tratada como material pornográfico e embalada em plástico preto com avisos de que se tratava de material inadequado para crianças e adolescentes. A imagem que o prefeito considerou pornográfica? Um beijo entre Wiccano e Hulkling, dois super-heróis da Marvel que se apaixonam numa história publicada pela primeira vez em 2010. Sim! O prefeito do Rio Janeiro considera pornográfico um simples beijo entre dois homens! Mas talvez não seja bem isso… O que move esses falsos moralistas de plantão que assumem cargos públicos é a chance de apelar mais uma vez para o “pânico moral” criado por eles mesmos e usado para garantir adesão e votos: “Precisamos proteger nossas crianças”, dizem eles. “Estão erotizando precocemente nossas crianças!”, bradam com convicção. Daí, pouco importa a análise do conteúdo em si. O ganho político (e a fake news) já estão consolidados. Devíamos então nos perguntar: que preço estamos pagando como sociedade por essa produção contínua de medo e intolerância?
Dias antes da tentativa de censura do Crivella, o governador de São Paulo determinou que milhares de apostilas distribuídas nas escolas públicas paulistas fossem jogadas no lixo por conterem duas páginas dedicadas a explicar e discutir as diferenças entre sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual. Relacionar as duas notícias pode nos ajudar a desmascarar a hipocrisia do pânico moral e onde de fato está o perigo. Numa sociedade onde os casos de abuso sexual acontecem em sua maioria dentro dos próprios lares das crianças, onde nossos governantes esperam que elas aprendam a diferenciar o corpo nu do erótico, o carinho da carícia, o amor do abuso? Retroceder ao tempo em que educação sexual era um tabu interditado em nossas escolas é facilitar a vida de pedófilos e abusadores, ameaçando a vida das crianças que os falsos moralistas tanto dizem proteger.
Em outro aspecto, o conteúdo sexual de fato inadequado e prejudicial para as crianças e adolescentes do nosso tempo não está nas HQs vendidas em bienais do livro ou em exposições de arte atacadas por fundamentalistas e aproveitadores. Ele chega através das telas dos smartphones de forma fácil, gratuita e massiva. Estudos têm apontado que o consumo de pornografia através da internet tem se tornado cada vez mais precoce e causado problemas sexuais e psicológicos entre adolescentes e jovens que utilizam tais vídeos como verdadeiros (mas inadequados) manuais de instrução. A saída aqui também não está na censura impraticável, mas na educação sexual que deve estar presente não só nos diálogos familiares, mas nos currículos escolares discutidos e definidos por professores e especialistas.
Da mesma forma, histórias de amor entre dois homens contadas de forma natural e sensível, como é o caso da HQ dos Jovens Vingadores, deveriam ser consideradas não só normais como desejáveis em uma sociedade que exclui e mata LGBTs todos os dias. Também deveríamos estimular que as escolas abordassem todos os assuntos relacionados à sexualidade, discutindo o melhor momento e as melhores formas para que o ambiente escolar seja tanto um local adequado para difundir o conhecimento científico sobre o assunto quanto um espaço acolhedor para que nossos adolescentes partilhem as muitas dúvidas que naturalmente surgem nesta fase da vida.
O perigo real para nossas crianças está na mente doentia de governantes que não têm vergonha de usar a censura e o medo como forma de se promover. Censura nunca mais!
*Tarcísio Motta é professor de História e vereador no Rio de Janeiro.
Edição: Vivian Virissimo