Coluna

A barbárie do discurso à prática

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Wilson Witzel comemora desfecho com morte do sequestrador do ônibus no Rio de Janeiro
Wilson Witzel comemora desfecho com morte do sequestrador do ônibus no Rio de Janeiro - Reprodução/ TV Globo
O Estado não pode assumir a vingança privada dos seus cidadãos

Por Olímpio Rocha*

É inegável que o discurso político de grupos de extrema-direita no Brasil atual tem fomentado um lamentável ambiente de práticas de legitimação de retrocesso civilizatório e verdadeira barbárie, tais como a tortura a que foi recentemente submetido um adolescente de 17 anos acusado de furtar uma barra de chocolate num supermercado em São Paulo, e que foi chicoteado pelos seguranças do estabelecimento, pena sumária pelo delito que cometeu, sem ter tido direito a qualquer contraditório.

Diante desse fato, impossível não se lembrar do período em que vigorou a escravidão no país - oficialmente abolida em 1888 - que seviciava homens, mulheres e jovens negros como o rapaz chicoteado pelo furto do chocolate, ironicamente oriundo do cacau cultivado em fazendas que mantinham seus antepassados sob a chibata dos senhorios e capatazes no Brasil colonial. 

A sevícia do século retrasado se transformou na política da morte que ignora a população brasileira pobre, preta e favelada, tantas vezes sem garantia sequer à defesa judicial antes da “sentença”, como no caso de que se trata.

Igualmente, em julho último, na Paraíba, uma guarnição de policiais militares ganhou notoriedade nas redes sociais por expor, em desfile público, corpos de assaltantes mortos em troca de tiros e depois exibidos como troféus, em caçambas de caminhonete, pelas ruas do Município de Barra de São Miguel, transformando a cena num espetáculo macabro de manipulação de cadáveres, em total desacordo com as regras de conduta da atividade policial, excedendo todas as raias da legalidade.

Contrariamente ao que se passou, é óbvio que a cena do confronto demandava preservação, para fins do trabalho necessário da perícia criminal, além do afastamento do público, a fim de evitar a nociva divulgação e exploração de cenas mórbidas e de mutilação. Pelo contrário, ali se testemunhou atos demagógicos de vingança ilegal que se prestaram unicamente a rebaixar as instituições policiais diante da sociedade civilizada que ainda preza pelo respeito às leis e à dignidade humana, as quais impõem o respeito no tratamento dos mortos, por piores que possam ter sido os atos por eles cometidos.

Outrossim, houve o episódio do governador fluminense, Wilson Witzel, criticado por comemorar como um “gol de campeonato” a morte de um assaltante de ônibus na capital carioca, alvejado por atirador de elite, sem falar do próprio presidente da república, Jair Bolsonaro, que tem dado declarações abjetas que também legitimam e naturalizam a desproporcional violência estatal e o discurso de ódio, por exemplo, ao fazer pouco caso da morte do então estudante Fernando Santa Cruz, pai do Presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, e, mais recentemente, ao desrespeitar a memória do general Alberto Bachelet, pai da ex-presidenta chilena Michele Bachelet, ambos torturados e mortos pelas ditaduras sanguinárias de seus respectivos países, por terem se posicionado contra os regimes de exceção. 

Fato é que as ditaduras mundo afora celebradas pelo alto mandatário da nação e sua grei foram responsáveis pela morte e desaparecimento de centenas de pessoas que não se submetiam ao jugo estatal autoritário, inconformadas com a cassação a direitos fundamentais, tais como a liberdade de expressão, e que jamais poderiam ter sido vítimas do Estado. É inaceitável que se louve as torturas praticadas à época, manchas indeléveis na história da humanidade e que ora são relevadas pelos discursos que vigoram nos veículos oficiais brasileiros.

São vários casos, portanto, que infelizmente têm referendado a cultura da barbárie, travestida de política pública de segurança, mas que, na verdade, se consubstanciam em inaceitável afronta ao Estado Democrático de Direito e ao Devido Processo Legal e que vilipendiam a ideia de Democracia, ela própria.

Nunca é demais lembrar que a Declaração Universal dos Diretos Humanos, de 1948, um dos documentos fundantes da Organização das Nações Unidas, traz em seus artigos 4º e 5º, os únicos direitos considerados absolutos pela doutrina jurídica, quais sejam a proibição da tortura e a proibição ao trabalho análogo à escravidão, dispositivos estes corroborados, por exemplo, pela Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e pelo seu Protocolo Facultativo, tratados assinados e ratificados pelo Brasil, tendo sido incorporados ao ordenamento jurídico nacional com status supralegal, ou seja, acima da lei ordinária. 

É necessário lembrar que o Estado não pode assumir a vingança privada dos seus cidadãos, posto que, se assim fosse, não haveria necessidade de um ordenamento com regras adjetivas e subjetivas a regulamentar as relações públicas e privadas sob o Leviatã. 

É preciso lutar diuturnamente contra esse retrocesso, contra o apequenamento das conquistas civilizatórias e contra a diminuição dos espaços de convivência isonômica na nossa nação, algo que, inclusive, tem sido denunciado internacionalmente por militantes e defensores dos direitos humanos que não se conformam com a implosão do estado democrático brasileiro, que, espera-se, volte a suspirar livremente em breve.

* Olímpio Rocha é advogado, mestre em ciências jurídicas (UFPB), professor de direitos humanos e membro do conselho estadual de direitos humanos da Paraíba. 

Edição: Daniela Stefano