PRATIMÔNIO

Procuradora do RN apoia proteção ao Hotel Reis Magos: “Tombamento não é congelamento”

Posição é divergente do Conselho Municipal de Cultura e do Iphan; tombamento poderia trazer benefícios para o turismo

Brasil de Fato | Natal (RN) |
Procuradora Geral do Estado, Marjorie Madruga, defende patrimônio histórico
Procuradora Geral do Estado, Marjorie Madruga, defende patrimônio histórico - Eduardo Maia

Reconhecido por especialistas como símbolo da arquitetura moderna e de um momento histórico vivido no cotidiano da cidade, o Hotel Reis Magos se encontra abandonado desde 1995 pelo grupo Hotéis Pernambuco S/A, proprietário do imóvel. Após anunciada demolição em 2013, o Instituto de Amigos do Patrimônio Histórico, Artístico, Cultural e da Cidadania (Iaphacc) iniciou três pedidos de tombamento, em processos administrativos, em níveis municipal, estadual e nacional.
Na semana passada, o Conselho Municipal de Cultura de Natal emitiu parecer desfavorável ao tombamento. A nível nacional, na última terça-feira (03), o Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Depam/Iphan) indeferiu o pedido de tombamento do Hotel, alegando que o edifício não apresenta “elementos significativos” com valor patrimonial em âmbito federal. Anteriormente, em março de 2017, o Iphan já tinha indeferido o pedido de tombamento, por entender que a importância do imóvel se evidencia em nível municipal e estadual.
No âmbito estadual, o pedido de tombamento é acompanhado por Marjorie Madruga, procuradora do Patrimônio e Defesa Ambiental do RN. De acordo com Marjorie, após a apreciação de estudos realizados por especialistas em Arquitetura e História da UFRN, que atestam a relevância do Hotel e justificam sua preservação, a Procuradoria emitiu parecer favorável ao tombamento parcial do imóvel. Ela discorda da decisão do Iphan e afirma que é incoerente reconhecer esses valores, que estão comprovados, como valores locais. "Ora, se a gente está discutindo arquitetura modernista brasileira, ela não é potiguar, é nacional, é da identidade do povo brasileiro", afirma. Em entrevista ao Brasil de Fato RN, ela afirma que proteção poderia beneficiar turismo e economia local. 

Brasil de Fato RN: A decisão pelo tombamento significaria manter o imóvel nas condições em que ele se encontra atualmente?
Marjorie Madruga:
Não. A gente tem sempre feito questão de mostrar que tombamento não é “congelamento”. Muito pelo contrário, o tombamento visa recuperar o bem para a sociedade. Ainda existe uma resistência muito grande em relação a esses institutos de tombamento, uma interpretação de que esses instrumentos de proteção vêm sempre para dificultar o desenvolvimento, quando, na verdade é o contrário, é um instrumento de desenvolvimento a partir da proteção do patrimônio cultural. 

A única forma do hotel contribuir para o aquecimento da economia e o turismo seria sendo demolido?
Não. O que seria da Europa, de Olinda, Pelourinho, se não tivessem preservado suas arquiteturas? Várias cidades vivem do turismo porque o patrimônio está preservado. Natal tem uma coisa muito curiosa que é que as pessoas que são donas das empresas da construção civil, também são praticamente as mesmas que dominam o setor hoteleiro e que, portanto, fazem essa interface muito íntima com o turismo. E, às vezes, também dominam a imprensa. Então, as coisas se confundem. Hoje, o turismo é a principal atividade econômica de Natal e do Rio Grande do Norte. Foi a partir do Hotel Reis Magos que o turismo iniciou. [A recuperação do] Hotel Reis Magos teria o potencial de requalificar toda aquela região abandonada pelo poder público. Então, acho que seria importantíssima a preservação, também para o turismo.

Outras construções brasileiras também são reconhecidas como arquitetura moderna, elas são tombadas como patrimônio?
Sim, inclusive, a gente tem o exemplo recente do Pedregulho, no Rio Janeiro, conjunto habitacional que fica no Complexo do Alemão. Ele estava completamente deteriorado, foi recuperado e, agora, está sendo alvo de visitação de turistas nacionais e internacionais, por ser um representante da arquitetura modernista. Essa visitação ficou tão intensa, que agora o governo do Rio de Janeiro está montando um projeto para estruturação. Se o Pedregulho, que é conjunto habitacional, estava sendo naturalmente visitado, sem qualquer esforço do poder público para atrair turistas, imagine o Hotel Reis Magos, à beira-mar, em uma zona privilegiada, dentro da área de interesse turístico três? Não sabemos transformar isso em um vetor de desenvolvimento? Será o Hotel que não tem esse mesmo potencial? O Edifício Copan, em São Paulo, também, é tombado. Já há uma tradição de reconhecimento, não é um ato inaugural.

De que forma a Procuradoria tem dialogado com organizações da sociedade civil?
Como eu sou uma procuradora da área ambiental, que diz respeito ao ambiente natural, construído e ambiental. É um princípio do direito ambiental o relacionamento com a sociedade civil. Por isso, sempre tenho um canal muito aberto com a sociedade civil, participo de audiências públicas, vou a reuniões, etc. Nós, da Procuradoria, somos a advocacia pública e, por isso, temos o dever de proteger o patrimônio da sociedade. Temos o papel de defender o patrimônio e fazer o controle da legalidade da administração pública, aplicando a legislação. Não sou eu, enquanto procuradora, que reconheço o valor de um bem cultural, minha expertise é jurídica. Como se trata de um patrimônio histórico, por isso são os profissionais da arquitetura e do urbanismo que vão atestar que o Hotel Reis Magos, por exemplo, é um representante da arquitetura modernista. Mas, na hora que tenho laudos que comprovam isso, só me resta aplicar o que diz a Constituição, que é o dever de aplicar as medidas de proteção.

O proprietário apresentou alguma justificativa para o encerramento das atividades no Hotel Reis Magos? 
Na época, o hotel foi fechado dizendo que seria feita uma reforma que nunca aconteceu. Ao longo de 20 anos, o proprietário estava constantemente anunciando uma reforma. Chegou, inclusive, a dar entrada em duas reformas, junto à Secretaria de Meio Ambiente e Urbanismo de Natal. Então, a sociedade estava recebendo notícias de que o Hotel Reis Magos seria recuperado. O hotel, quando foi comprado por eles, era de luxo. Os móveis eram de luxo, tinha obras de arte de artistas potiguares, como Newton Navarro. Tudo isso foi destruído ao longo dos anos. Por fim, ele está destruindo o prédio. Outra coisa importante é que, hoje, existe uma outra narrativa, que é transformar causa em efeito. A justificativa é que tem que demolir porque o hotel está deteriorado, virando antro de violência. Mas isso é efeito, não causa. A sociedade já vem sendo prejudicada, há mais de 20 anos, pela postura do proprietário e pela omissão do município. Então, como ato final, a sociedade deve perder, também, o patrimônio cultural?

Não houve nenhum tipo de iniciativa para desapropriação?
Não. Houve um momento em que existia uma dívida de IPTU muito alta, por parte do empresário com o município de Natal. Nisso, em 2014, em uma reunião com o então prefeito Carlos Eduardo Alves e sociedade civil, foi anunciado que foi feito um acordo com o proprietário para “dispensar a dívida” para que ele pudesse investir esse valor na reforma. Não sei como, do ponto de vista jurídico, essa negociação foi feita, porque ninguém teve acesso ao processo. Mas o fato é que, mais uma vez, você tem um descumprimento por parte do proprietário, porque de fato a dívida desapareceu, mas não houve recuperação do imóvel. Então, é mais uma dívida do proprietário com a sociedade, afinal de contas, dinheiro de IPTU é dinheiro público, é de todos nós.

Em relação ao município de Natal, está reaparecendo a discussão de verticalização da orla com o novo plano diretor. Quais seriam os impactos para a cidade?
Agora, falo enquanto cidadã, já que a Procuradoria atua a nível estadual. A lógica do mercado esquece que a cidade é um complexo humano e não uma área de apenas ganhar dinheiro. Eu faço parte do Fórum Direito à Cidade, estou acompanhando as discussões do plano diretor e entendo que a verticalização é danosa para a cidade e viola vários direitos. Quando se fala na verticalização da orla, utilizam o exemplo da orla de Boa Viagem, em Recife, mas não contam os conflitos que estão por trás disso. Natal, desde os anos 1970, quando a cidade foi pensada na sua orla, foi sempre com o objetivo de preservar a paisagem, que é nosso diferencial. Atrás da verticalização, existe um processo de gentrificação, o objetivo é expulsar as comunidades economicamente mais vulneráveis daqueles bairros mais tradicionais. O desenvolvimento que é pregado pelo mercado imobiliário não é o da Constituição, não é um desenvolvimento sustentável. Pelo plano diretor atual, se o Hotel Reis Magos fosse demolido, o proprietário só poderia construir um prédio de dois andares. O hotel tem quatro, porque na época não existia essa limitação. O que acreditamos é que ele, na verdade, está esperando a alteração do plano diretor, para a verticalização

Edição: Isadora Morena