Reunidos na Escola de Formação de Quadros Camponeses do Movimento Camponês de Papaye (MPP), na comuna rural de Hinche, a cerca de 80 quilômetros de distância da capital, Porto Príncipe, representantes de diversas organizações progressistas discutem a criação de um acordo para enfrentar a atual crise política, econômica e social que atravessa o Haiti.
O evento, intitulado Fórum Patriótico, conta com a presença de 250 pessoas, entre integrantes de partidos políticos progressistas do país caribenho, organizações sociais e de direitos humanos, movimentos populares, feministas e camponeses.
No próximo sábado (31), serão apresentados os pontos de um acordo unitário que tem como principal reivindicação a renúncia de Jovenel Moïse, presidente do país, que é apoiado pelo governo dos Estados Unidos e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
Entre as questões discutidas pelos participantes está a organização de uma mobilização popular para alcançar a destituição de Moïse e pelo julgamento imediato dos responsáveis – entre eles, o presidente -- pelo desvio de 3,8 bilhões de dólares de fundos públicos da Petrocaribe, que seriam destinados à criação de programas sociais e projetos energéticas.
A plataforma política apresentada como resultado do fórum inclui ainda uma proposta de reforma eleitoral que permita recuperar a credibilidade do instrumento do voto, posto que as últimas eleições contaram com altos níveis de abstenção e diversas acusações de fraude.
Delegados internacionais da Venezuela, Brasil, Argentina, África do Sul e Estados Unidos, integrantes da Alba Movimentos, Via Campesina e Assembleia Internacional dos Povos também acompanham a conferência. João Pedro Stedile, da direção nacional do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra, presente no evento, acredita que a realização do Fórum é um passo importante do processo de mobilização das organizações sociais do país.
“Estou seguro de que estão num clima pré-insurgência e vão derrubar o governo. O povo haitiano vive nas ruas, há uma tradição de estar nas ruas e manifestar-se politicamente. Virão mudanças muito importantes”, comenta o dirigente.
Por sua vez, Manuel Bertoldi, integrante da Assembleia Internacional dos Povos, considera que a atual crise no país está relacionada a um contexto internacional mais amplo e, por este motivo, é papel das organizações internacionais apoiar e acompanhar o processo de mobilização no país.
“Sabemos que a situação de Haiti não afeta só o país, mas tem a ver com a correlação de forças em todo o mundo, da disputa entre os interesses do capital e as forças populares”, comenta.
Histórico de protestos
O Haiti vive um ciclo de protestos desde julho de 2018. O estopim para as primeiras manifestações foi o reajuste de 51% no preço dos combustíveis. Após a mobilização popular, Moïse retrocedeu em sua decisão e congelar o reajuste.
Atos também ocorreram em outubro e novembro de 2018. Além da renúncia do presidente, os manifestantes pediam maior transparência do governo quanto aos casos de corrupção já conhecidos na Petrocaribe, além de saídas emergenciais para a crise econômica do país.N
Novos protestos voltaram a acontecer entre fevereiro e junho deste ano após o Tribunal de Contas divulgar um documento inédito que comprova a participação de altos funcionários do governo federal em um esquema de malversação de fundos que iriam para programas sociais durante o governo do ex-presidente haitiano Michel Martelly, também de centro-direita.
Envolvida no esquema, uma empresa então administrada pelo atual presidente se apropriou de parte dos fundos de um programa promovido pelo governo venezuelano junto a países do Caribe, na aliança da Petrocaribe. Nesse projeto, a Venezuela fornece petróleo em condições especiais com o objetivo de ajudar no financiamento de projetos sociais às comunidades pobres desses países.
O tema dos combustíveis continuou presente nas manifestações, não mais pelo reajuste, que foi congelado, mas devido ao não atendimento da demanda do país, como comentou o jornalista Lautaro Rivara em entrevista com o Brasil de Fato. “O problema atual é que há muita falta de combustíveis no país, por causa de uma dívida que o Estado mantém com empresas importadoras de gás”, comentou Rivara, que também é integrante da Brigada Internacional da Alba Movimentos no Haiti.
Nos últimos dois anos, a inflação do Haiti variou entre 13 e 15%. Além disso, a moeda do país, o gourde, passa por um momento de frequente desvalorização frente ao dólar.
Na avaliação do jornalista, a atual crise haitiana é “basicamente, o fracasso de décadas de políticas neoliberais e de políticas econômicas absolutamente tuteladas e coordenadas pelos Estados Unidos e por outras potências”.
"Ajuda humanitária" e dívida com FMI
O país caribenho é o mais pobre das Américas, com cerca de 80% de sua população vivendo na pobreza, e tenta se reerguer após o catastrófico terremoto de magnitude 7, que ocorreu em 2010, e da passagem dos furacões Matthew e Irma, em 2016 e 2017.
A calamidade que atravessou o país em 2010 abriu a oportunidade para a “ajuda humanitária” da ONU, que passou a controlar o Haiti a partir da MINUSTAH, com a presença de 7 mil soldados e policiais. Após a chegada da missão da ONU, o país sofreu também uma epidemia de cólera que matou mais de 8 mil pessoas, segundo os dados oficiais, e mais de 30 mil pessoas, segundo estudos independentes.
A dívida do Haiti com o FMI teve início após o terremoto de 2010, que causou a morte de mais de 200 mil pessoas e perdas materiais enormes, quando a organização financeira realizou um “empréstimo” de 114 milhões de dólares ao país caribenho, que deveria começar a ser devolvido após cinco anos e meio.
Em fevereiro de 2019, o governo confirmou um novo acordo assinado com o FMI para a obtenção de um crédito de 229 milhões de dólares para o período de três anos. Entre as decisões recentes, está também a privatização dos setores de energia e combustíveis após deixar a Petrocaribe.
Edição: Luiza Mançano