Um ano depois da reconversão da moeda local, o bolívar, a Venezuela enfrenta novas etapas da guerra econômica. As sanções econômicas ficaram mais severas, a pressão política internacional aumentou, mas também as alianças com países amigos foram ampliadas, o que contribuiu para a criação de novos mecanismos para romper o cerco econômico.
Em agosto do ano passado, o governo venezuelano cortou cinco zeros do bolívar. Além disso, o dólar oficial foi recalculado e hoje está muito próximo ao valor do paralelo. Apesar do novo plano econômico, velhos problemas da economia venezuelana, como a inflação galopante e o dólar que sobe sem tréguas, permanecem, embora de forma menos acelerada neste ano.
Já o abastecimento de supermercados e farmácias melhorou, se comparado ao mesmo período no ano passado. E um novo fenômeno surgiu: as lojas de produtos importados, chamados de bodegões. Nos últimos meses foram aberto inúmeros negócios desse tipo. Vendem produtos alimentícios estrangeiros, muitos deles considerados itens de luxo.
O economista Manuel Sutherland explica a febre dos bodegões. “Com as sanções econômicas aplicadas contra venezuelanos, algumas pessoas que podiam retirar facilmente seu dinheiro da Venezuela, por diversas vias, hoje podem ser bloqueadas. Então estão reinvestindo. E um dos negócios que oferece menos risco é a importação de alimentos não perecíveis e que se possa vender em dólar”, destaca o economista. Isso porque, com o novo plano econômico, o governo venezuelano liberou o uso do dólar no comércio. Ainda que a maioria dos venezuelanos continuem fazendo pagamentos em moeda local, o uso do dólar é cada vez mais comum.
Nesse aspecto, a oferta de produtos importados também chega para atender a demanda de uma classe média que maneja dólares, de acordo com Sutherland. “Os bodegões atendem uma demanda de pessoas que recebem em moeda estrangeira, e que antes viajavam mais e gastavam seu dinheiro no estrangeiro. Agora está mais difícil viajar, mas podem comprar os produtos aqui”, aponta.
A empresária Barbara Homero, de 29 anos, viu nesse setor uma oportunidade e decidiu mudar de ramo. Sua loja, que antes vendia produtos eletrônicos, agora vende creme de amendoim, de avelã, leite de amêndoas, café solúvel, suplementos e vitaminas, biscoitos e toda classe de salgadinhos industrializados e produtos multiprocessados. Todos importados dos Estados Unidos. Mas, e o bloqueio?
“Esse tipo de produto o bloqueio não afeta. Importamos em pequena escala e não são produtos de abastecimento massivo”, explica Barbara, que tem a sua loja no shopping El Recreo, no Bairro de Sabana Grande, zona de comércio que mistura o popular e a classe média.
Em outro bodegão, no mesmo shopping , vende-se água importada da França, cervejas mexicanas, vinhos italianos e dos EUA, porém o que mais sai é algo que poderia ser comprado em qualquer supermercado em outro país da América Latina. “O que a gente mais vende é comida congelada, como pizza, nuggets e sorvete”, afirma a gerente da loja Bodega Caracas, Ana Hernandez, de 23 anos.
Os produtos importados industrializados e multiprocessados praticamente desapareceram dos supermercados da Venezuela nos últimos quatro anos. E reapareceram agora nos bodegões. Por outro lado, alimentos como frutas, verduras, lácteos, grãos, massas e algumas proteínas como frango e ovos, com produção nacional, já são facilmente encontrados em quase todos os supermercados.
“O problema agora é o preço e a inflação, que vêm em dólares”, afirma a dona de casa Rosa Romero, de 55 anos. Cada vez que o dólar sobe os preços aumentam. Isso porque a Venezuela é um país que importa mais de 80% de tudo o que consome, segundo dados do Ministério de Relações Exteriores da Venezuela.
Pontos críticos da economia
O salário-mínimo venezuelano está em 90 mil bolívares, o equivalente a U$ 5 dólares (R$ 20). O valor é compensado com os benefícios das políticas sociais e o baixo custo dos serviços básicos, como água, luz, telefone, internet e o transporte de metrô, que cobram valor simbólico. Além disso, o governo venezuelano subsidia a cesta básica, através dos Comitês Locais de Abastecimento e Produção, uma forma de organização comunitária.
A inflação desvalorizou a salário e o bloqueio econômico impossibilita o governo de mobilizar recursos, segundo o economista Tony Boza.
“O salário estava vinculado ao valor da criptomoeda, o petro, que por sua vez estava baseado no valor do barril de petróleo. Mas isso não funcionou assim”.
Boza também explica às limitações do Estado venezuelano. “O governo cometeu erros, como qualquer governo. Entretanto, é um governo que está tentando romper um cerco do sistema econômico internacional”. O economista ressalta ainda que a questão da inflação da Venezuela tão pouco segue uma lógica de mercado.
“Aqui é a inflação gerada pela manipulação cambial [do mercado paralelo]. Quando o dólar sobe, os preços disparam. A inflação na Venezuela não é um problema de liquidez, mas pela guerra econômica que sofremos”.
A manipulação cambial é feita por páginas web administradas fora da Venezuela, geralmente desde os EUA ou Colômbia, que marca um valor do dólar diferente do Banco Central e que sobe a cada semana, sem seguir uma lógica de mercado e sim a partir de especulações políticas que visam pressionar o governo de Nicolás Maduro.
Segundo Sutherland, a inflação começou a diminuir a partir março. “O período mais crítico de hiperinflação foi entre agosto do ano passado e março desse ano, que chegou a 200% nos meses de janeiro e fevereiro, até que começou a diminuir em março. Nos meses de maio e junho o ritmo inflacionário baixou quase 30%, que segue sendo alto, mas foi uma queda importante. E agora tudo se dificulta com as sanções”.
Justamente quando a economia venezuelana dava sinais de reação, os EUA aplicaram nova sanções, na primeira semana de agosto.
Atualmente, a Venezuela possui duas classes sociais principais. Diferente de outros países, onde as classes são divididas de acordo com o acesso a bens, serviços e recursos financeiros, na Venezuela a diferenciação é feita entre aquele que possuem dólares e os assalariados.
“Aquelas pessoas que têm acesso ao dólar são justamente o público dos bodegões. São pessoas que estão relacionadas com o processo de produção e comercialização de bens e serviços”, diz Tony Boza. Entre eles, estão os comerciantes, mesmo os pequenos, os profissionais liberais como médicos, dentistas, advogados, assim como os familiares de pessoas que migraram e agora enviam moeda estrangeira.
Os dados oficiais do Serviço Administrativo de Identificação, Migração e Estrangeiros (Saime) apontam que 2,8 milhões de venezuelanos migraram entre 2014 e 2018. Tomando em conta estes dados, é possível calcular que as remessas estrangeiras alcançam pelo menos a 10% da população venezuelana, já que as famílias venezuelanas, de acordo com o governo, são compostas em média por cinco pessoas e os recursos enviados impactam positivamente a qualidade de vida de toda a família.
Mesmo entre a classe média assalariada, alguns profissionais já recebem em moeda estrangeira. É o caso do piloto de avião comercial Victor dos Santos, de 21 anos, que trabalha para um empresário que tem uma aeronave particular.
“Existe uma bolha, conformada por uma classe média que tem acesso ao dólar e que está crescendo. Vá ao Aeroporto Caracas, no município de Charallave (estado de Miranda) e vai ver uma frota de 300 aviões privados”, afirma o piloto. A Venezuela é o sétimo país com a maior frota de jets privados mundo, fazendo parte da seleta lista liderada pelos Estados Unidos, México e Brasil.
Em algumas zonas de Caracas não há sinal de crise. Bares e restaurantes de luxos cheios, carros custosos entopem os estacionamentos e shoppings lotados são alguns sinais de que nos bairros de classe média alta de Caracas a dificuldade financeira não chegou. Nos mercados de luxo dessas zonas mais abastadas é possível encontrar caviar, presunto serrano espanhol, queijos e vinhos europeus de primeira qualidade e até costelinha de porco embalada a vácuo, por um módico valor de U$90 (R$ 360).
Edição: João Paulo Soares