Os incêndios que se alastram pela Amazônia tornaram-se uma grande preocupação mundial ao longo dos últimos dias. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Brasil vive a maior onda de queimadas dos últimos cinco anos. Somente em 2019, o número de focos de incêndio chega a 7.003.
Imagens das chamas que consomem partes do território amazônico, intensificadas no mês de agosto, retratam um cenário desolador. Na opinião de especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, devido à extensão das queimadas, os danos à fauna e flora locais são de imensa gravidade.
Para pesquisador do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) Roberto Palmieri, levará muito tempo para que a Amazônia volte a ser o que era.
“Em um incêndio florestal uma área como a amazônica demora décadas para se recuperar. No mínimo. Se for um incêndio florestal em uma vegetação com árvores seculares, serão alguns séculos para recompor. Estamos falamos em uma perda na qual a recuperação possivelmente não irá recompor a diversidade que tínhamos agora nesses locais”, alerta.
Ele reforça que o cenário é ainda pior quando se trata de regiões da Amazônia com árvores antigas. “São décadas se considerarmos florestas que já foram mexidas. Se forem florestas primárias, com árvores de porte grande, estamos falando de mais de um século. Sem exagero nenhum, estamos falando em cem anos para recuperar a diversidade de uma área como essa, que foi queimada”, explica.
Gabriel Ribeiro Castellano, engenheiro agrônomo pela Universidade de São Paulo (USP) e ex-gestor da Floresta Estadual Navarro de Andrade, unidade de conservação com mais focos de incêndio no estado de São Paulo, concorda.
“A floresta possui uma estrutura e espécies com diferentes funções ecológicas. As árvores clímax, ou seja, as grandes árvores que geram sombra para as demais formas de vida, podem demorar mais de mil anos para chegar em seu tamanho máximo. Desta maneira, a recuperação das funções ambientais de uma vegetação primária queimada na Amazônia pode demorar alguns séculos”, acrescenta.
Animais mortos
Mestre em geociências e meio ambiente, Castellano afirma que todo o ecossistema é prejudicado com as queimadas. Dessa forma, a destruição da flora resulta também na destruição da fauna.
Segundo ele, a carbonização é a primeira consequência sentida pelo reino animal. As espécies que não morrem de imediato podem sofrer ferimentos incapacitantes ou letais.
“Alguns animais e a maioria dos mamíferos pode, através do olfato, sentir a chegada do fogo e assim conseguem fugir de forma rápida. As aves são menos atingidas porque podem voar, porém ovos e ninhos são destruídos. Existem alguns mamíferos mais lentos que são mais atingidos como tamanduá, bicho preguiça e filhotes de todas as espécies. Após o fogo, com a perda dos habitats, os animais podem morrer por falta de abrigo ou alimento”, explica Castellano.
A fauna da Amazônia é reconhecida internacionalmente por ser constituída por milhares de espécies de animais, entre répteis, anfíbios, peixes, aves, insetos e mamíferos terrestres e aquáticos. Muitas delas endêmicas, ou seja, só ocorrem nesta região.
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Roberto Palmieri comenta que, na proporção que as queimadas estão se expandindo, até mesmo animais carnívoros de grande porte como onças e jaguatiricas, que conseguiriam escapar dos incêndios com maior facilidade, podem ser afetados.
Ele ressalta que a fauna do solo, tão importante quanto o restante do ecossistema, é a mais atingida em incêndios e desmatamentos.
“Há uma riqueza de micro-organismos vertebrados e invertebrados que vivem no solo. Minhocas, aracnídeos, uma série de outros insetos. Eles são eliminados conforme o fogo passa, o calor acaba com eles. E essa fauna do solo é fundamental para manter toda a flora… Uma flora saudável, depende de um solo rico, nutricionalmente falando, e são os micro-organismos da fauna do solo que mantém essa qualidade”, pontua Palmieri.
“Quando falamos em Amazônia e vemos aquelas florestas exuberantes, com árvores gigantescas, o que mantém aquelas árvores enormes, é um solo fértil, saudável, rico em nutrientes. Só são possíveis graças a esses microorganismos”, continua o especialista.
Dia do fogo
Devido ao tempo seco comum a esta época do ano, as zonas de florestas do país tornam-se mais suscetíveis a incêndios. Porém, as chamas da última semana têm origem, majoritariamente, na ação predatória de fazendeiros.
Em busca de expansão das áreas de pastagem ou para plantações de soja, os produtores organizaram o Dia do Fogo em 10 de agosto. Neste dia, em Novo Progresso, no Pará, aconteceram 124 focos de queimadas. No dia seguinte, foram 203 casos. A ação se espalhou por outras regiões nos dias seguintes.
Com a extensão do fogo, Castellano lamenta que a fumaça tenha afetado os sentidos dos animais, que, intoxicados e desorientados, não tiveram opção.
“Como os focos de incêndio foram coordenados e ocorreram em diversos pontos na mesma região, pode ter ocorrido fogo de encontro, ou seja, dois focos de incêndio se encontram, um vindo de cada lado. Desta maneira os animais ficam sem escapatória e aquele animal que estava fugindo de um foco de incêndio para a direção contrária, acaba surpreendido”, assinala.
Ele avalia ainda que, com os incêndios, o Brasil possa ter perdido espécies que ainda não haviam sido registradas. “O maior risco é de espécies de insetos ou mesmo de microrganismos estarem sendo extintas sem ao menos terem sido descobertas porque é muito mais difícil registrar e catalogar esses espécimes”, diz o engenheiro agrônomo.
Natureza fragmentada
Conforme informações disponibilizadas pelo Ministério do Meio Aambiente (MMA), a Amazônia é o maior bioma do Brasil e abriga um terço de toda a madeira tropical do mundo, além de mais de 30 mil espécies de plantas.
“Toda essa fauna depende da flora local para viver ou se alimentar. Na Amazônia ocorrem aproximadamente 5.000 espécies de árvores, 3.000 de ervas, 1.300 arbustos, além de trepadeiras e outras formas de vida. Toda essa biodiversidade está ameaçada... Até mesmo os peixes que dependem das matas ciliares (formação vegetal localizada nas margens dos córregos, rios e lagos) para a proteção da qualidade da água”, complementa Castellano, acrescentando que nos rios amazônicos existem cerca de 85% de espécies de peixes da América do Sul.
O engenheiro agrônomo explica que, ao destruírem árvores, as queimadas perpetuam a fragmentação das florestas. Neste processo, o que era uma floresta contínua se torna pequenas matas isoladas, alterando toda a estrutura de vegetação local. O processo também faz com que animais e outras plantas tenham que migrar para outras áreas para sobreviver.
Governo Bolsonaro
Na quinta-feira (22), Emmanuel Macron, presidente da França, convocou o G7 (grupo composto por Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido), para discutir os incêndios da Amazônia, considerados por ele uma crise internacional.
Até a convocação de Macron, Jair Bolsonaro só havia dito -- sem apresentar provas -- que ONGs estariam por trás do aumento das queimadas no Brasil, acusação repudiada por especialistas de todo país.
Apenas após a pressão internacional, na tarde desta sexta-feira (24), o presidente do PSL assinou um decreto de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) que autoriza o emprego das Forças Armadas na Amazônia.
Conforme o documento, que será publicado em edição extra do Diário Oficial da União, militares poderão atuar em "áreas de fronteira, terras indígenas, unidades de conservação ambiental e em outras áreas da Amazônia Legal". A validade é de um mês, entre 24 de agosto e 24 de setembro.
Roberto Palmieri critica as declarações de Bolsonaro e aponta os responsáveis: “A quem interessa os incêndios florestais na Amazônia? Não interessa às ONGs, interessa aos produtores rurais que querem limpar suas áreas. É assim que é feito, tradicionalmente, a limpeza das áreas da Amazônia. Derruba e taca o fogo. O fogo limpa e aí vem o pasto, outras culturas”, comenta.
Na opinião do gestor do programa de Florestas de Valor do Imaflora, Bolsonaro erra ao ignorar e desqualificar informações estratégicas como as disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Para Gabriel Ribeiro Castellano, se o cenário de destruição não for interrompido, o futuro da biodiversidade brasileira estará totalmente comprometido.
“É possível que a Amazônia vire uma grande monocultura e a cana de açúcar, a soja ou o milho, dominem as paisagens. [É possível] que muitas espécies acabem extintas mesmo antes de serem descobertas. Podem ainda ocorrer problemas relacionados à qualidade do ar, ao comprometimento do solo e a poluição dos recursos hídricos”, analisa.
Edição: Rodrigo Chagas