Intenção era interferência no jogo político para outros atores ocuparem o poder
Por Martonio Mont’Alverne Barreto Lima*
Com as revelações trazidas pelo The Intercept/Brasil foi possível que se confirmasse o que já se dizia há muito tempo: a Operação Lava Jato tinha um objetivo político. Neste objetivo estava o fim dos governos de centro-esquerda que foram eleitos no Brasil de 2002 a 2014. A aposta da Operação Lava Jato – especialmente da Força Tarefa do Ministério Público Federal e de seus aliados na burocracia judiciária: Política Federal e Juiz Federal – era alta: o desgaste promovido por processos, prisões e condenações conduziria a uma renovação da direção da política nacional que seria retomada, principalmente, pelo PSDB e seus aliados. Não foi o que se sucedeu, mas isto não interessa aqui.
Interessa-nos um aspecto que ainda merecerá a detida atenção de pesquisadores das ciências sociais e história: como foi possível que procuradores da República, juízes e delegados, não integrantes da elite econômica brasileira, decidissem investir tão fortemente contra governos que defenderam projetos nacionalistas de desenvolvimento econômico, e reconhecidamente enfrentassem, pela primeira vez na história brasileira, a desigualdade social com universalização de políticas de inclusão social? Porque membros desta elevada burocracia judiciária assimilaram tão rapidamente a ideologia de destituição destes governos em nome do enfrentamento à corrupção?
The Intercept/Brasil revelou a parcialidade da Operação Lava Jato contra os governos de centro-esquerda e seu amplo arco de alianças, inclusive à direita. Não melindrar o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, não investigar o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha e absolver sua mulher, sabidamente conhecedora da origem dos recursos financeiros do marido, são apenas alguns dos exemplos comprovadores de que o alvo não era a corrupção da política no Brasil: a intenção era mesmo a interferência no jogo político para a ocupação do poder político por outros atores, igualmente envolvidos em financiamento de campanhas e compra de apoio político parlamentar, como sempre foi comum em qualquer democracia do mundo.
A burocracia judiciária que conduziu a Operação Lava Jato era composta quase completamente de indivíduos egressos da classe média do Estado do Paraná. Já se dispõe de estudos sobre esta composição social. Não se tratava de servidores públicos com vínculos familiares ou de negócios com a elite econômica, ao que se conhece. Em sua grande maioria, são descendentes de antigos servidores públicos, ocupantes de cargos com algum poder de decisão. O desapreço a uma Constituição garantista e desenvolvimentista foi o motor da investida da Operação Lava Jato.
Este lado da Operação tem sido demonstrado em vários escritos, ao longo de quatro anos, donde se sobressaem as obras e os textos quase diários de um dos nossos mais expressivos intelectuais e jurista, Lenio Streck. O desmonte da empresa nacional da construção civil e da exploração do petróleo – esta última tão cara ao melhor jurista do Brasil sobre o assunto, Gilberto Bercovici – fez-se presente nas atitudes da Operação Lava Jato: o ápice de tudo foi a entrega pelo Procurador Geral da República de material sobre as atividades da Petrobras às autoridades americanas. Inclusive aspectos estratégicos de investimentos da maior empresa brasileira. Por quais razões agiram assim, tão ferozmente contra a estatal e o interesse nacional e contra quem os defendia?
Uma das explicações sobre este tipo de comportamento que nada tem de irracional foi oferecida por Ran Hirschl, em sua obra conhecida Toward Juristocracy. Ao cunhar a expressão juristocracia, Hirschl consegue identificar que o Poder Judiciário “não cai do céu e é politicamente construído”. Assim, elites econômicas que “preferem isolar seus interesses das possibilidades de mudanças democráticas” recorrem ao poder dos juízes, com que “têm interesses compatíveis”, para reformular sentidos da constituição e das leis em seu favor.
O receio da perda de influência no âmbito de decisões políticas e a ascensão de novos atores que jamais entravam nos orçamentos públicos, como pobres com acesso à renda e universidades, desencadeou autêntica reação de classe.
A brutalidade desta reação materializou-se logo em seguida, com a eleição de Bolsonaro. Este recebeu apoio dos membros da Operação Lava Jato, como agora se conhece, cuida em destruir a democracia e os direitos expandidos nos últimos 13 anos, e ainda conta com o Juiz da Operação como Ministro da Justiça.
Eis a atualidade da teoria da história marxiana. A luta de classes faz girar a roda da política. E nesta realidade, como se viu no Brasil, a chamada luta identitária, por exemplo, resta com pouca significação: os mais conservadores aliados do capital financeiro não têm o menor receio de apoiar reivindicações identitárias, desde que lhe restem preservados o poder de decisão e mando sobre a agenda econômica de qualquer governo.
A aliança que se formou entre elites econômicas brasileiras subalternas à agenda internacional e integrantes de grande parte de nossa burocracia judiciária é reveladora de que uma verdadeira democratização de nossas política e sociedade ainda está distante da modernidade, com seus parâmetros elementares de um pacto razoavelmente civilizatório.
Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é professor titular da Universidade de Fortaleza e procurador do município de Fortaleza
Edição: Daniela Stefano