A população brasileira que viu a privatização de importantes setores como telefonia e energia entre outros nas décadas passadas já conhece o discurso de que a venda de empresas estatais leva à melhora da qualidade de serviços e provoca a queda dos preços.
Mas não é bem assim. O que acontece é que o consumidor fica refém de preços muito mais variáveis, a qualidade nem sempre é garantida, já que o investidor não quer ter perdas financeiras e os lucros deixam de ir para o Estado, que deveria investir em direitos fundamentais da população, como saúde, educação e segurança.
Diante do desmonte do setor público que vem sendo realizado pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) e sua equipe, o Brasil de Fato conversou com analistas de alguns setores sobre o futuro de um Brasil privatizado.
Combustíveis
As privatizações no setor de combustíveis anunciam um cenário nebuloso para o país e para o consumidor que está preocupado com o preço que paga nos postos de abastecimento. Ao vender, na semana passada, 35% da BR Distribuidora, o governo federal tirou da Petrobras o poder de controlar o preço final de gás, gasolina e diesel nas bombas.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o analista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Iderley Colombini, disse que há várias razões que justificam a preocupação com as privatizações que estão sendo feitas pela equipe do presidente Jair Bolsonaro.
“O Brasil não tem uma malha ferroviária bem estruturada, o transporte marítimo também não é. Logo, todos ficarão reféns do preço do petróleo, que estará sujeito ao jogo político do mercado financeiro, se China, Estados Unidos e Rússia entram em guerra comercial ou se começa alguma guerra nos países do Oriente Médio”, avalia o pesquisador do Dieese.
Além de atentar contra a soberania do país, contra o poder de o Brasil praticar seus próprios preços sem ficar sujeito às variações externas, Bolsonaro repete os mesmos erros cometidos em 1997 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso na privatização da Vale do Rio Doce, hoje conhecida apenas como Vale.
“A União vendeu sua parte por R$ 3,3 bilhões e a propriedade e controle da Vale passaram integralmente ao setor privado. Apenas de 1998 a 2000, a Vale teve lucro líquido de R$ 4,2 bilhões. Depois, no ‘boom das commodities’, ela chegou a lucrar R$ 37,8 em um único ano”, relembra Colombini.
A BR Distribuidora teve 35% das ações do governo vendidas por R$ 9,6 bilhões, mas apenas em 2018 teve lucro líquido de R$ 3,2 bilhões. Segundo o analista do Dieese, por fatores diversos, os ganhos da subsidiária de postos de combustíveis vão subir ainda mais, mas o dinheiro não vai para os cofres públicos.
“A prioridade será atender aos interesses dos acionistas. Podemos esperar demissões, redução de salários, venda de postos de gasolina, aumento de preços, tudo isso porque não tem mais política de Estado por trás dela. As ações vão valorizar e o valor de compra vai ser rapidamente recuperado, porque vão atender apenas aos interesses do mercado estrangeiro”, avalia Colombini.
Alimentos
O impacto da privatização na produção de alimentos ainda é pouco debatido no país. Na última semana foi anunciada a venda da BR Distribuidora. E você, enquanto leitor, deve estar se perguntando: como isso afeta a minha vida?
Humberto Palmeira, da coordenação do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), explica que as privatizações no Brasil sempre apontaram para aumento dos preços dos produtos e perda na qualidade dos serviços e que, no caso da BR Distribuidora, não será diferente.
“A tendência é de aumento do preço dos combustíveis e impacto no valor dos alimentos e dos insumos para sua produção. A longo prazo, inviabiliza as pequenas propriedades camponesas, territórios quilombolas e indígenas, expulsando os camponeses, assentados, quilombolas e povos originários para ampliar latifúndios e concentrar a renda da terra no agronegócio”, ressalta Palmeira.
Mais fome
O setor de abastecimento está na mira da privatização. Bolsonaro pretende desestatizar ou desativar 27 dos 92 armazéns da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A empresa é responsável pela política de preços mínimos de produtos agrícolas e teve papel estratégico no desenvolvimento de programas que se tornaram referência no país, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
De acordo com Palmeira, a Conab é chave na estratégia de segurança alimentar. A privatização do setor pode acarretar em maior concentração de renda para o agronegócio, o que inviabilizaria a produção do pequeno agricultor.
“Na mão da iniciativa privada, ocorreria a submissão completa do país ao comércio internacional de alimentos que ao longo da história exterminou a pequena produção rural. As consequências desta privatização seriam o aumento da fome. O mercado não está preocupado em produzir alimentos e sim mercadorias”, afirma.
O representante do MPA alerta para mais consequências: “Além disso, ocorreria o aumento do adoecimento provocado por má alimentação e o extermínio da pequena propriedade para ter mão de obra barata no campo e na cidade, mas, sobretudo, para alcançar renda da terra”.
Criada em 1990, a Conab está presente em todos os estados brasileiros e tem a missão de promover a garantia de renda ao produtor rural, a segurança alimentar e nutricional e a regularidade do abastecimento, gerando inteligência para a agropecuária e participando da formulação e execução das políticas públicas. Além disso, a Conab tem a responsabilidade de executar estratégias de inclusão social, que são adotadas pelo governo federal, com ênfase na geração de emprego e renda.
Energia
Do total de 138 empresas estatais federais, 42 são de energia, segundo dados divulgados pelo governo no ano passado. Na contramão do mundo, as hidrelétricas concentram a maior capacidade instalada de geração de energia no Brasil, com 64% do total, seguida pela térmica com 25,7%, eólica (9,1%) e solar (1,8%). Sendo a última a que mais cresceu no último ano.
Se por um lado a energia hidráulica é a mais vantajosa do ponto de vista do custo de produção, o benefício pela abundância de recursos hídricos no país não chega até as contas de luz dos consumidores. A Associação Brasileira de Distribuidoras de Energia Elétrica (Abradee) lançou em 2018 um estudo comparativo com 33 países que demonstra que o Brasil possui a quarta maior carga tributária na conta de luz.
“A geração hidráulica tem um custo infinitamente inferior que as demais fontes de eletricidade. Aqui se produz eletricidade com um dos custos mais baixos do mundo e o preço que a população paga é um dos mais altos do mundo. Isso se chama taxa de lucro extraordinária. O setor privado quer a taxa média mais um lucro extra que em tempos de crise serve como um reserva de lucro”, explica Gilberto Cervinski, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Mestre em Energia pela Universidade Federal do ABC.
O caráter estratégico do setor elétrico brasileiro está no centro de uma disputa que afeta diretamente a tarifa de luz no país e a soberania nacional. O Ministério de Minas e Energia do governo Bolsonaro já tem pronta uma proposta de privatização da Eletrobras, maior empresa brasileira de energia elétrica, com 48 usinas hidrelétricas.
“Quem paga hidrelétrica não é empresário, é o BNDES que empresta o dinheiro e quem paga é a conta de luz da população. Demora 30 anos pra se pagar. Depois ela pertence ao povo. Todas já foram construídas há mais de 30 anos. Ao privatizar, reorganiza o preço de venda, contratos comercialização. Vai aumentar muito a tarifa para os consumidores finais nos próximos anos”, completa Cervinski.
Produtores rurais e novas tendências
Desde 2013, um decreto assinado pela presidente Dilma Rousseff (PT) garantia descontos de até 30% na conta de luz de agricultores e população do campo. Isso mudou no final do mandato de Michel Temer (MDB), que tratou de acabar com os subsídios rurais no prazo de cinco anos para mais de 4,4 milhões de famílias. Cervinski avalia que além do prejuízo social, a medida causa alta no preço dos alimentos.
Bolsonaro manteve a decisão. Para o pesquisador, a próxima “tendência” no setor elétrico que agrada aos empresários é o fim da Tarifa Social que beneficia pessoas de baixa renda. E ainda o avanço na direção de privatização da água com o Marco Legal do Saneamento Básico, do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), permitindo abertura do setor a empresas privadas.
“Essa acelerada tentativa de privatizar os rios e lagos também cai no aumento das contas de luz e água nas cidades. A privatização da Eletrobras é parte desse processo. No final, quem paga a conta são 72 milhões de residências”, finaliza Cervinski.
Edição: Vivian Virissimo