As ações de Moro estão acima de uma percepção de simples desvio de conduta
Naquele que é provavelmente o conto mais popular da mitologia grega, a Esfinge, uma espécie de ser com corpo de leão e cabeça de humano, impunha aos viajantes, para entrar na cidade de Tebas, que decifrassem um enigma, sendo devorados os incapazes de responder. “Decifra-me ou te devoro” era a ordem fatal.
Algumas questões políticas da contemporaneidade brasileira parecem tão complexas quanto a mítica interpelação filosófica. O que sobrará do sistema de justiça do país, caso não sejam enfrentadas as consequências dos diálogos revelados pelo portal The Intercept Brasil e seus parceiros? Qual a credibilidade da Justiça no Brasil vista do exterior, se alguma das ameaças feitas aos jornalistas forem cumpridas? Que papel o Supremo Tribunal Federal pretende exercer, de fato, diante da atual situação jurídico-política no Brasil?
Há uma enxurrada de denúncias contra membros do Ministério Público Federal, desde participar de conluio com um juiz, a lucrar com uma operação de investigação. Há outras tantas acusações contra o mesmo então juiz, que hoje é ministro da Justiça e da Segurança Pública, desde agir em total parcialidade com finalidades políticas, até interferir na investigação que prendeu supostos hackers. Há uma quantidade tão grande de desvios funcionais, que o grotesco já é palavra comum. E há o eloquente silêncio do Supremo Tribunal Federal.
A teia de relações que se estabelece, e que são reveladas no The Intercept e parceiros, pelos diálogos no aplicativo Telegram, não se restringe a Curitiba, isso está evidente. Ainda que no momento em que escrevo ainda não tenham surgido diálogos envolvendo diretamente autoridades do sistema de Justiça de mando nacional, conversas dão conta de que pareceres do Procurador-geral da República ao STF foram “encomendados” por membros da força-tarefa ao seu chefe de gabinete, com o intuito de devolver investigações relativas a determinadas pessoas à 13ª Vara Federal de Curitiba, para a caneta do juiz Sérgio Moro, e de que houve participação ao menos de um ministro do STF em palestras pagas e sigilosas a banqueiros e empresários.
A atuação do ministro Moro após a prisão dos supostos hackers, que teriam passado os conteúdos dos diálogos ao portal The Intercept é, provavelmente, a mais contundente para evidenciar sua ausência de pudores e compreensão de limites no exercício de poder. Moro age, a um só tempo, como ministro, juiz e chefe das investigações policiais. E, supondo que cumulasse as três funções, estaria, mesmo assim, agindo em todas ao arrepio da lei. Quebrou o sigilo de uma investigação em curso em que é parte, ao ligar pessoalmente para autoridades dos três poderes, para informar que seus aparelhos foram vítimas de ataque hacker, ao mesmo tempo em que informou que destruiria provas, em uma espécie de chantagem implícita, e passando por cima do juiz responsável pelo inquérito. São tantos abusos cumulados que se mostra difícil descrevê-los em uma só linha de raciocínio.
A questão é que as ações de Sérgio Moro se encontram acima de uma percepção de simples desvio de conduta, ou de abuso de autoridade. Não são apenas uma intromissão injustificável no trabalho da Polícia Federal; não apenas comprometem a autonomia de uma investigação. O homem público Sérgio Moro parece crer no boneco inflável, que seus seguidores colocam nas ruas em dias de manifestação: acredita que tem superpoderes, como um herói. Esse herói, como juiz, praticava toda sorte de ilegalidades, com combinações espúrias com uma das partes do processo e resolvia tudo com sua caneta. Suas ações e decisões não eram revistas, como deveriam, pelos tribunais superiores, ou averiguadas pelos órgãos de controle, apesar de todos os recursos e todas as denúncias feitas por pessoas e entidades.
A trajetória de ‘herói” parece ter criado em Sérgio Moro a ilusão de que seus poderes de juiz -- talvez aí resida sua kryptonita -- poderiam ser levados para o exercício do cargo no Poder Executivo. Se tudo podia como magistrado, tudo poderia como ministro de Estado. Pareceu não se dar conta de que seu cargo depende, apenas e tão somente, do indivíduo que ocupa a cadeira de presidente da República, cujas ações são, cada dia mais, desequilibradas.
“Decifra-me ou te devoro”, dizia a Esfinge aos viajantes. Ao Supremo Tribunal Federal é provável que caibam as perguntas: qual caminho seguirá o sistema de justiça diante do que foi revelado? Como olhar para a Lava Jato sem lembrar que os desmandos, as delações sem provas, as conduções coercitivas sem mandado prévio, os vazamentos seletivos, a parcialidade escancarada, a interferência no resultado eleitoral, a utilização da exposição para lucros? Tudo que muitos supunham e denunciavam, e que agora se apresenta pela voz de seus próprios atores? Se nossa Suprema Corte permanecer calada, e mantiver a blindagem que impera sobre as personalidades públicas, cujos conteúdos revelados de conversas comprometem a credibilidade das instituições, se não der a resposta correta, é provável que realmente a passagem para a ordem jurídica do Estado Democrático esteja bloqueada.
Quiçá por um soldado e um cabo.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira