Coluna

Meu amigo gaúcho!

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Uma vez, fomos de trem de Belo Horizonte a Salvador e ele estava com mania de estudar animais da Caatinga
Uma vez, fomos de trem de Belo Horizonte a Salvador e ele estava com mania de estudar animais da Caatinga - Pixabay
Tive um colega de faculdade que foi meu parceiro de viagens pelo Brasil

Eu tive um colega de faculdade, na Geografia da USP, que foi meu parceiro de viagens por muitas partes do Brasil.

Gaúcho, o Quincas, tinha um problema: de repente, no Sertão do Nordeste, destampava a falar com sotaque gaúcho exagerado. E tinha mania de cientista.

Uma vez, fomos de trem de Belo Horizonte a Salvador e ele estava com mania de estudar animais da Caatinga.

Em cada lugar que o trem parava para pegar lenha, ele descia correndo e entrava pela Caatinga, querendo ver que tipo de bicho tinha ali. E eu o acompanhava nisso.

Ele levou um livro para ler no trem, justamente sobre animais da Caatinga. Na capa tinha uma cobra de boca aberta, ameaçando um bote.

Vi que um homem já velho olhava curioso a capa do livro enquanto o Quincas lia, e como gostava de conversar com esse pessoal, e aprendia muito com essas conversas, pedi o livro do Quincas e entreguei ao homem, falando:

— O senhor quer ver?

Ele olhava admirado as ilustrações e fotos dos bichos que ele via na sua região.

O Quincas também quis se entrosar com ele, mas falou em tom de cientista, com sotaque gaúcho:

— Bah, tchê, por estas paragens existem muitos ofídios peçonhentos?

O velho fez uma cara de espanto, e eu cochichei:

— Ô, Quincas, ofídios peçonhentos a gente não fala nem na cidade universitária!

Virei pro velho e perguntei:

— Tem muita cobra venenosa por aqui?

Aí ele sorriu e falou com estranha alegria:

— Ô! Toda semana morre um mordido de cobra. — E rolaram porradas de histórias de mordidas de cobra, encantadores de cobras....

Em Salvador, contei isso para uns amigos, e virou gozação. A história se espalhou.

De volta a São Paulo, fui a um bar frequentado por estudantes e ouvi uma conversa na mesa ao lado, de um cara que disse ter acabado de chegar de Salvador.

Começou uma história:

— Na viagem de ida, peguei um trem de Belo Horizonte a Salvador, com um cara chamado Quincas, da Geografia.

Ele tem mania de falar com sotaque gaúcho e estava estudando os animais da caatinga...

O sujeitinho contou toda a história como se tivesse acontecido com ele.

Sei que a apropriação de causos alheios é uma característica dos mentirosos, não cortei o barato dele com a turma, mas fiquei admirado com a circulação que a história já tinha e com a coincidência de estar ali ouvindo um cara que nunca vi contando como se tivesse acontecido com ele o que aconteceu comigo um mês antes.

Só murmurei: que cara-de-pau!
 

Edição: Michele Carvalho