resistência

Artistas e ativistas lançam movimento contra autoritarismo e violência do Estado

"Vozes do Silêncio" reúne em São Paulo músicos, intelectuais e militantes de Direitos Humanos em defesa da Democracia

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Caminhada do Silêncio no Ibirapuera lembrou os assassinados  pela Ditadura
Caminhada do Silêncio no Ibirapuera lembrou os assassinados pela Ditadura - Elineudo Meira | Mídia Ninja

“Paz sem voz é medo”, diz uma canção do grupo O Rappa em clipe exibido logo no início do evento, que lançou ontem (24) à noite o Vozes do Silêncio, movimento contra a violência do Estado, na ditadura e nos dias de hoje. É um desdobramento da I Caminhada do Silêncio, realizada em 31 de março no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, que reuniu milhares de pessoas em repúdio contra a repressão e o autoritarismo. Como diz manifesto, o objetivo é reafirmar o compromisso com a democracia, defender “participação social nas decisões públicas” e exigir respeito a decisões internacionais relativas aos direitos humanos.

A importância se torna maior no momento atual, afirmam os organizadores. Segundo o diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, o ex-ministro e ex-secretário Rogério Sottili, trata-se de “transformar as dificuldades em um movimento de luta por memória, verdade e justiça”.

A presidenta da Comissão Especial sobre Mortos de Desaparecidos, a procuradora da República Eugênia Gonzaga, considera o ato do último 31 de março “o mais significativo” desde o período da Constituição de 1988. O evento de ontem, no Teatro da Universidade Católica (Tuca), na zona oeste de São Paulo, foi organizado também pelo Núcleo de Memória Política e pela PUC, com apoio de outras entidades. “Para que as vozes se ampliem e sejam ouvidas em todas as esferas dos poderes de Estado”, diz ainda o manifesto (leia ao final do texto).

A maior parte do ato foi musical. Arregimentados pelo cantor Renato Braz, vários artistas se apresentaram, cantando e declamando. Estavam lá, entre outros, Breno Ruiz, Eduardo Gudin, Jean e Joana Garfunkel, José Miguel Wisnik, Lela Simões e Vicente Barreto. No início, foi exibido pela primeira vez o curta I Caminhada do Silêncio em São Paulo, do cineasta Camilo Tavares, diretor do documentário O Dia que Durou 21 Anos, que detalha a participação norte-americana no golpe de 1964.

O movimento começa a angariar recursos para lançar um CD com diversas participações. Segundo Eugênia, a ideia é lançar o álbum em agosto, a tempo de “descomemorar” os 40 anos da Lei da Anistia. No encerramento do ato, ela manifestou preocupação com a prisão de líderes do movimento sem-teto em São Paulo, nesta segunda-feira, e também destacou a manutenção na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) de recurso contra a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Independentemente de qualquer postura partidária, nós não pactuamos com a injustiça”, afirmou a procuradora.

Mas foram mesmo as canções que deram o tom da noite, incluindo clássicos como Cálice (Chico Buarque e Gilberto Gil) e Mordaça (Gudin e Paulo César Pinheiro), composições da primeira metade dos anos 1970, sob o período mais agudo da ditadura. Até chegar a O Bêbado e a Equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc), um dos “hinos” da anistia, feito em 1979, e terminar com todos no palco interpretando o Canto das Três Raças (Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro), a mesma música que fechou a caminhada de março no Ibirapuera.

Gudin observou que Mordaça, composta em 1974 e com um verso sempre lembrado (“O importante é que a nossa emoção sobreviva”) “infelizmente está mais atualizada” que Verde, outra obra sua (parceria com Costa Netto), feita já no período da redemocratização. Jean e Renato cantam Contumaz, dos irmãos Garfunkel (incluindo Paulo): “E se a lucidez me cega/ A cegueira me faz ver/ Quanto mais a vida nega/ Mais vontade de viver”.

Joana declama versos do uruguaio Mário Benedetti: “Cantamos pela infância e porque tudo/ e porque algum futuro e porque o povo/ cantamos porque os sobreviventes/ e nossos mortos querem que cantemos”. E Wisnik canta duas de suas obras, entre as quais Primavera: “A primavera é quando ninguém acredita/ E ressuscita por amor”. Mas uma boa síntese das mazelas nacionais parece estar em uma composição feita 20 anos atrás, A Cara do Brasil, interpretada por Vicente Barreto, autor da melodia, em parceria com o letrista Celso Viáfora.

O Brasil é o homem que tem sede
ou quem vive da seca do sertão?
Ou será que o Brasil dos dois é o mesmo
o que vai é o que vem na contramão?
O Brasil é um caboclo sem dinheiro
procurando o doutor nalgum lugar
ou será o professor Darcy Ribeiro
que fugiu do hospital pra se tratar?

A gente é torto igual Garrincha e Aleijadinho
Ninguém precisa consertar
Se não der certo a gente se vira sozinho
decerto então nunca vai dar

O Brasil é o que tem talher de prata
ou aquele que só come com a mão?
Ou será que o Brasil é o que não come
o Brasil gordo na contradição?
O Brasil que bate tambor de lata
ou que bate carteira na estação?
O Brasil é o lixo que consome
ou tem nele o maná da criação?

Brasil Mauro Silva, Dunga e Zinho
que é o Brasil zero a zero e campeão
ou o Brasil que parou pelo caminho:
Zico, Sócrates, Júnior e Falcão

Confira o manifesto:

VOZES DO SILÊNCIO CONTRA A VIOLÊNCIA DE ESTADO

Em 31 de março de 2019, milhares de pessoas saíram às ruas, em todo o país, para participar de marchas silenciosas e das mais variadas manifestações realizadas em protesto ao golpe civil-militar de 1964. Foi o maior ato público contra a ditadura militar e a recorrente violência de Estado, desde a Constituição de 1988.

Naquele domingo, o silêncio foi quebrado por vozes que se ergueram para defender valores democráticos; para clamar por Justiça; para honrar a memória das milhares de pessoas assassinadas, desaparecidas e torturadas pela ditadura militar e de todas as demais vítimas da violência que o Estado acumula, mesmo após a redemocratização.

Para que essas vozes se multipliquem e sejam ouvidas em todas as esferas dos poderes de Estado, dá-se início, neste 24 de junho de 2019, no histórico auditório da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), ao movimento “Vozes do Silêncio contra a Violência de Estado”.

O “Vozes do Silêncio” manterá viva a jornada iniciada em 31 de março de 2019, não apenas para reforço dos eventos que anualmente são promovidos no dia 31 de março, como também para inspirar outras ações que contribuam com a luta histórica por Democracia e por Justiça para todos e todas as pessoas, sobretudo às populações atingidas pela violência de Estado, sob todas as suas formas.

Como parte dessas ações, o “Vozes do Silêncio” inicia sua jornada com a apresentação das seguintes demandas prioritárias aos órgãos executivos, legislativos e integrantes do sistema de Justiça:

I. Reafirmação do compromisso com a Democracia, a participação social nas decisões públicas e o não retrocesso nos direitos sociais, econômicos, culturais, civis e políticos;

II. Respeito às decisões de tribunais internacionais de direitos humanos;

III. Punição de agentes públicos responsáveis por graves violações aos direitos humanos;

IV. Revisão dos critérios de militarização das funções policiais e da formação de agentes públicos;

V. Adoção de medidas concretas para reversão dos índices de mortalidade violenta das populações indígena, negra e pobre.
Reafirma-se, finalmente, que o presente movimento surgiu da luta pela Justiça de Transição e continuará se dedicando à defesa de seus pilares, ou seja, a) preservação da Memória e resgate da verdade sobre as graves e reiteradas violações a direitos humanos praticadas em nosso país; b) promoção da Justiça com a punição dos agentes responsáveis por graves violações aos direitos humanos; c) reparação material e imaterial às vítimas e seus familiares; d) reforma das instituições envolvidas com a da violência de Estado, seja na sua perpetração ou na manutenção da impunidade.

“PARA QUE NÃO SE ESQUEÇA, PARA QUE NUNCA MAIS SE REPITA.”

Edição: João Paulo Soares