Às vezes, o feio vem à tona
“Pela humanidade, camaradas”, escreve Frantz Fanon no final de sua monumental obra Os condenados da terra, “devemos virar a página, devemos elaborar novos conceitos e tentar colocar em marcha um novo homem”. Desigualdades terríveis em nosso mundo mantêm a humanidade dividida. Há poucos conceitos para nos guiar em nosso grande desejo de superar essas divisões, poucos são os roteiros de luta para criar uma nova sociedade. Há a rigidez da cultura e a crueldade do capitalismo, certamente, mas, notoriamente, há ainda o conluio dos poderosos para bloquear o avanço da história.
No final de semana passado (9/12), o The Intercept Brasil divulgou provas definitivas de como se dá esse conluio. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi preso como parte da Operação Lava Jato, sob acusação de corrupção, e, assim, foi impedido de se candidatar a eleição presidencial de 2018. Uma série de materiais – arquivos e conversas privadas – prova que o juiz Sérgio Moro discutia o caso com o promotor Deltan Dallagnol, a quem Moro deu conselhos sobre como proceder. Além disso, o que é extremamente grave, os promotores da Lava Jato conspiraram e usaram investigação para prejudicar a campanha do Partido dos Trabalhadores (PT) em 2018. O juiz Moro, que condenou Lula por meio de uma investigação corrompida, é agora o ministro da Justiça do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Os advogados de Lula disseram que usarão essas revelações em um documento que será enviado ao Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas. Não é de admirar que a hashtag #MoroCriminoso tenha viralizado no Brasil. Existem, agora, pedidos para que Moro renuncie.
É difícil chocar-se hoje em dia, uma vez que fomos nos acostumando a esse tipo de comportamento. “Pois é”, dizemos enquanto balançamos a cabeça, “é assim que acontece”. Esse cinismo desmobiliza e nos faz deixar de lado a obrigação de exigir que as instituições cumpram os próprios valores estabelecidos por elas. Se você não está com raiva – independentemente da sua posição política – com essas revelações, então, a cultura da democracia está esgotada. Nos deixaremos ser tragados pelo sorriso de canto de boca dos poderosos que se protegem com a desmobilização das massas.
O conluio não ocorre apenas entre setores do governo em um só país. Também ocorre para além das fronteiras. Ao sair do Equador, o embaixador Todd Chapman deu uma entrevista a um dos principais jornais do país. Ele foi questionado sobre a pressão dos EUA para tirar Julian Assange de sua embaixada em Londres. Chapman ignorou a questão. Mas quando perguntado sobre o desenvolvedor sueco de software e defensor de direitos humanos Ola Bini, que já está preso há dois meses no Equador, ele disse algo bastante interessante. O repórter – Xavier Reyes – perguntou se os agentes do FBI haviam colaborado com as autoridades equatorianas no caso de Ola Bini. Agora está claro que os bens de Ola – incluindo computadores – foram enviados para os EUA para análise. Chapman respondeu de forma enigmática: “Quando recebemos ordens para ajudar, ajudamos”. Ligações para o FBI não foram atendidas. Se você não estiver acompanhando de perto este caso, leia a minha coluna sobre a detenção de Ola e visite a página Free Ola [Libertem Ola] para saber mais sobre o assunto.
Enquanto isso, o ministro do Interior do Reino Unido, Sajid Javid, assinou as ordens de extradição dos EUA para Julian Assange. Como escreveu nosso amigo Eduardo Galeano, “a indignação deve ser sempre a resposta à indignidade”.
Não há espaço para o cinismo aqui. Um inocente defensor dos direitos humanos está preso. Ele precisa que nós lutemos pela ampliação da democracia.