“Se você não quer esses riscos, você não deve fazer jornalismo”, afirma Glenn Greenwald sobre a série do The Intercept Brasil que revelou no último domingo trocas de mensagens nada republicanas entre o então juiz federal Sérgio Moro e a força-tarefa da Lava Jato.
As revelações, frutos de documentos enviados por uma fonte anônima, podem ter influenciado os rumos das últimas eleições no país e seu conteúdo dinamitou uma série de reações em todas as esferas de poder e da opinião pública.
Na entrevista à Agência Pública, Greenwald fala sobre as reações dos envolvidos e trata da cobertura da imprensa sobre a Lava Jato antes e depois das reportagens do The Intercept Brasil. “Quando a grande mídia transforma Moro e a força-tarefa em deuses ou super heróis, se torna inevitável o que aconteceu. Os jornalistas pararam de investigar e questionar a Lava Jato e simplesmente ficaram aplaudindo, apoiando e ajudando”, avalia.
Segundo ele, há exceções como a Folha de S. Paulo e jornalistas independentes. E pondera: “preciso falar que depois de publicar o que publicamos, acho que com uma exceção, que é a Globo, a grande mídia está reportando o material de forma mais ou menos justa, com a gravidade que merece”.
Confira:
Durante o processo de recebimento do material da fonte anônima e da própria produção das reportagens quais foram os momentos mais complicados na tomada de decisão jornalística? Como foi esse processo para vocês?
Para mim foi muito parecido com a reportagem que fizemos com o caso Snowden. Quando você recebe um arquivo gigante, é muito difícil, num primeiro momento, entender o que você tem e o contexto dos documentos que estão nesse arquivo. Segundo, quais os principais documentos que você vai usar, porque, obviamente, estamos lendo conversas privadas entre pessoas, e tem a questão do direito à privacidade mas, por outro lado, essas pessoas estão usando o poder público, então também precisam de transparência — exatamente o que eles fizeram quando interceptaram e divulgaram as conversas privadas do Lula.
Como você avalia a repercussão a partir da própria imprensa brasileira? Hoje, por exemplo, você disse que “a estratégia da Globo é a mesma que os governos usam contra aqueles que revelam seus crimes” e que “a Globo é sócia, agente e aliada de Moro e Lava Jato”.
É incrível porque, para mim, o tempo todo, a grande mídia não estava reportando sobre a Lava Jato, ela estava trabalhando para a Lava Jato. Com uma exceção que é a Folha de S. Paulo. A Folha, para mim, manteve uma distância, uma independência, estava criticando, questionando… Mas a Globo, Estadão, Veja, o tempo todo estavam simplesmente recebendo vazamentos, publicando o que a Força Tarefa queria que eles publicassem. Mas, na realidade, preciso falar que depois de publicar o que publicamos, acho que com uma exceção, que é a Globo, a grande mídia está reportando o material de forma mais ou menos justa, com a gravidade que merece.
Por exemplo, o editorial de hoje do Estadão — que era um dos maiores fãs do Moro — falando que ele deve renunciar e Deltan ser afastado. Isso mostra a gravidade das revelações.
A única exceção é a Globo, mas essa é uma exceção enorme por causa do poder do Jornal Nacional que está quase tratando a história somente como um crime — e o único crime que interessa é o da nossa fonte, que eles acham que ela cometeu. Eles não têm quase nenhum interesse nas gravações e no comportamento do Moro, do Deltan. Eles estão falando sobre o comportamento da fonte e, na realidade, eles não sabem nada. Mas é interessante por que isso é comportamento de governo.
Como assim?
Quando você denuncia ações de corruptos ou trata de problemas sobre o governo, ele sempre tenta distrair falando somente sobre quem revelou essa corrupção, quem divulgou esses crimes para criminalizar pessoas, jornalistas ou fontes que revelaram o material. Essa estratégia, não dos jornalistas, é o que a Globo está usando. Porque a Globo e a força-tarefa da Lava Jato são parceiras. E os documentos mostram isso, né? Não é só eu que estou falando isso por causa da Globo. Os documentos mostram como Moro e Deltan estão trabalhando juntos com a Globo e nós vamos reportar, então eu sei disso já e a reportagem está mostrando. Mas o resto da grande mídia está tratando a história com a gravidade que merece. É impossível para todo mundo que está lendo esse material defender o que Moro fez. Impossível!
Se eu entendi, Glenn, você está me dizendo que os documentos que vocês ainda estão trabalhando vão apontar uma relação mais próxima da Globo nesse processo com Dallagnol e Moro, é isso?
Eu não posso falar muito sobre os documentos que ainda não publicamos porque isso não é responsável. Precisa passar pelo processo editorial mas, sim, posso falar que exatamente como disse hoje, a Globo foi para a Força Tarefa da Lava Jato aliada, amiga, parceira, sócia. Assim como a Força Tarefa da Lava Jato foi o mesmo para a Globo.
Muita gente está querendo saber qual vai ser o próximo passo do The Intercept Brasil, as próximas reportagens. Queria que você esclarecesse o que é fundamental para essa apuração estar pronta jornalisticamente, para que vocês soltem novas revelações.
Não somos o Wikileaks. Não estamos simplesmente publicando material que nós temos, sem contexto ou reportando sem entender, sem analisar, sem pesquisar. Estamos fazendo jornalismo. E esses documentos são complexos. Entendo que todo mundo queira ver o que nós temos porque esse material tem interesse público e eles [o público] têm o direito de ver. Mas, por outro lado, nós temos a responsabilidade jornalística para usar o tempo que precisarmos para confirmar que tudo que nós estamos reportando é verdade. Por que se nós cometermos um erro, eles vão usar isso contra a gente para sempre, para atacar nossa credibilidade, da reportagem, de tudo. Por exemplo, todo mundo está falando: “onde estão os áudios?”. É muito complicado reportar áudios. Precisa confirmar quem está falando, precisa confirmar o contexto sobre o que estão falando. Precisa conectar isso com outros materiais, outros documentos e isso leva tempo. Nós vamos publicar logo, mas nós não vamos correr. Nossa prioridade é confirmar que tudo que estamos reportando está informando o público e não enganando o público, como eles fizeram.
Na sua avaliação, até pelo fato de você também ser advogado, se um escândalo como esse, que envolve um ministro da Justiça, fosse nos Estados Unidos, por exemplo, você acha que o ministro conseguiria se manter no cargo? E, pessoalmente, você acha que o Moro deveria renunciar ao Ministério da Justiça?
Eu tenho um amigo, dos meus melhores amigos da vida desde os 11 anos, agora um advogado na Flórida, que depois de ler nosso material, disse: “Se um juiz fizesse o que Moro fez, sem dúvida, esse juiz seria retirado, provavelmente não seria promovido porque é uma infração muito grave, colaborando com um lado e fingindo ser neutro”. Ele me disse ainda que todas as decisões desse juiz ficariam sob dúvida e que é impensável que o juiz pudesse manter qualquer cargo público, muito menos ser ministro da Justiça. Porque agora todos nós sabemos, porque nós lemos exatamente o que ele fez, o que ele disse, que ele vai quebrar qualquer regra de ética que ele quiser para realizar os objetivos dele.
Advogados brasileiros — que não são muito políticos — ficaram chocados e ofendidos quando olharam o material e eu também — porque o juiz tem muito poder, e com esse poder vêm muitas responsabilidades, muitas regras éticas. É um poder enorme para condenar alguém e botar alguém na prisão. E o Moro não quebrou uma regra uma vez, mas o tempo todo ele estava mostrando que ele não se importa nem um pouco com essas regras. Ele achou que era totalmente acima da lei e das regras, e é impossível ter alguém como juiz ou como Ministro da Justiça com essa mentalidade.
Como você avaliou a reação do Moro? Por exemplo, o primeiro pronunciamento escrito foi tuitar sua própria nota oficial via site do Antagonista. O que isso significa?
Primeiro, ele está usando o Antagonista para muitas coisas, o tempo todo. Ele está sempre citando o Antagonista, vazando para o Antagonista, todo mundo sabe disso…
O fato de ele usar o Antagonista mostra, para mim, que agora ele sabe que é o único apoio que vai ter — a identidade dele não é mais de juiz apartidário, agora Moro sabe que é uma figura da direita extremista.
E ele vai continuar assim porque todo mundo sabe que Moro não é uma pessoa contra a corrupção mas uma pessoa que faz corrupção quando quiser. E usar o Antagonista mostra que a única preocupação é o que a direita está pensando sobre os comportamentos dele.
E a reação dele, o que achou?
Foi totalmente arrogante, ele está quase falando: “Está me incomodando ter que responder isso”. E achei muito interessante a arrogância porque é exatamente: “Eu sou Sérgio Moro, eu não devo ser questionado, muito menos acusado”. É justamente essa arrogância que causou esse comportamento antiético: porque ele acha que está acima de tudo.
O vazamento do The Intercept Brasil demonstrou mais uma vez a importância de informações vazadas para jornalistas. O caso de pedido da extradição de Julian Assange foi pouco tratado na imprensa brasileira [Assange está com pedido de extradição para os Estados Unidos com 17 acusações como de espionagem e conluio para obter informações secretas]. Isso pode abrir precedente, com implicações até mesmo fora dos EUA?
Com certeza. Esse é o perigo principal que estão mostrando outros países que tentam criminalizar o jornalismo falando que, se você publica documentos secretos, que é o papel do jornalista, você pode ser processado criminalmente como parte dessa teoria de que está conspirando com a sua fonte. Antes desses episódios, sempre os jornalistas tiveram o direito de publicar qualquer material que eles recebessem, independentemente de como a fonte conseguiu obter os documentos. E esses casos, essas apreensões, são perigosas exatamente porque eliminam essa separação entre jornalista e fonte.
Você acha que a imprensa brasileira cobriu mal a Lava Jato durante esses mais de 5 anos? Queria que você me dissesse se sim ou se não e se você acha que foi falta de capacidade de investigação ou opção política?
Não. Acho que tiveram boa intenção. Corrupção é muito comum aqui no Brasil na direita, esquerda e no centro. Todo mundo chegou no limite e não aguentava mais. Eu entendo o apoio a Lava Jato ao ver políticos poderosos e bandidos finalmente na prisão, é natural. Eu também elogiei a Lava Jato, às vezes, por causa disso. Mas, exatamente como acontece com todos os humanos, qualquer grupo de pessoas que têm poder, como a Lava Jato, também tem a capacidade de abusar desse poder. E quando a grande mídia transforma Moro e a Força Tarefa em deuses ou super heróis, se torna inevitável o que aconteceu. Os jornalistas pararam de investigar e questionar a Lava Jato e simplesmente ficaram aplaudindo, apoiando e ajudando.
Como eu disse, com exceção da Folha, que ficou sempre um pouco mais distante e mais independente e, obviamente, muitos jornalistas independentes. Estou falando sobre a grande mídia.
Eu vi que o Antagonista publicou que “uma denúncia anônima foi protocolada junto ao Ministério Público Federal contra o The Intercept”. E a gente está vendo desde a publicação da reportagem inúmeros ataques a você, ao seu companheiro David Miranda [deputado federal pelo PSOL], ataques homofóbicos, gente pedindo a sua deportação. Enfim, questões que te atingem pessoalmente. Você, sua família e também a equipe do The Intercept Brasil têm uma estratégia de defesa legal e digital? Como vocês estão pensando a questão da segurança daqui para frente?
Sim. Eu e meu marido estivemos juntos no caso do Snowden e nós lutamos contra os governos mais poderosos do mundo e a CIA, NSA Reino Unido… Estávamos sendo ameaçados o tempo todo. Então, nós já conhecemos essas questões muito bem. Eu moro aqui no Brasil há 14 anos, então conheço o Brasil muito bem. Eu sei como funciona.
Nós ficamos muitas semanas planejando como proteger a nos e a nossa fonte contra os riscos físicos, riscos legais, riscos políticos, riscos que vão tentar sujar a nossa reputação. Nós estamos prontos. Mas não existe nenhuma vida sem riscos. Não se pode eliminar riscos, pode-se tomar medidas para minimizar. Então, a equipe do The Intercept Brasil, que não tem a proteção como alguém com a minha visibilidade, que é casado com um deputado federal… Eles são jovens, 25, 30 anos, e são muito corajosos fazendo esse trabalho destemido. Sim, é muito perigoso, obviamente, e sou alvo dessa campanha para me expulsar do país, chamando-me de inimigo do Brasil, ameaça a segurança nacional e que devo ser preso.
Mas nós sabíamos que tudo isso iria acontecer, mas o que podíamos fazer? Têm jornalistas cobrindo guerras. Têm jornalistas sem visibilidade investigando corrupção contra pessoas muito perigosas.
Se você não quer esses riscos, você não deve fazer jornalismo.
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A Globo entrou em contato com o Brasil de Fato para prestar esclarecimentos, após a acusação de Greenwald. Confira na íntegra a nota enviada pela assessoria de comunicação:
"Glenn Greenwald procurou a Globo por e-mail no último dia 29 de maio para propor uma nova parceria de trabalho. Em 2013, a emissora já havia dividido com ele o trabalho sobre os documentos secretos da NSA referentes ao Brasil. Uma parceria que mereceu elogios dele pela forma como foi conduzido o trabalho.
Greenwald ficou ainda mais agradecido por um gesto da Globo. Nas reportagens que a emissora divulgou, em algumas frações de segundo era possível ver nomes de funcionários da agência americana, que não trabalhavam em campo, mas em escritório. Mesmo assim, tal exposição poderia levá-lo a responder a um processo em seu país natal, os Estados Unidos. A Globo, então, assumiu sozinha a culpa, declarando que, durante a realização da reportagem, Greenwald se preocupava sobremaneira com a segurança de seus compatriotas. Tal atitude o livrou de qualquer risco.
Ao e-mail do dia 29 de maio seguiram-se alguns telefonemas na tentativa de conciliar agendas (ele estava viajando) para um encontro, finalmente marcado. Ele ocorreu na redação do Fantástico no dia 5 de junho. Na conversa, insistindo em não revelar o tema, ele disse que tinha uma grande “bomba a explodir” e repetiu que queria voltar a dividir o trabalho com a Globo, pelo seu profissionalismo. Mas, antes, gostaria de saber se a emissora tinha algo contra ele, sem especificar claramente os motivos da pergunta, apenas dizendo que falara mal da Globo em algumas ocasiões. Provavelmente se referia a um artigo que seu marido, o deputado David Miranda, do PSOL, tinha publicado no Guardian com mentiras em relação à cobertura do impeachment da presidente Dilma Rousseff. O artigo foi rebatido por João Roberto Marinho, presidente do Conselho Editorial do Grupo Globo, fato que deu origem a comentários desairosos do próprio Greenwald.
Na conversa de 5 de junho, ele afirmou que “tudo estava no passado”. Prontamente, ouviu que jamais houve restrição (de fato, David Miranda já foi inclusive convidado para entrevista em programa da GloboNews). Greenwald ouviu também, com insistência, por três vezes, que a Globo só poderia aceitar a parceria se soubesse antes o conteúdo da tal “bomba” e sua origem, procedimento óbvio. Greenwald se despediu depois de ouvir essa ponderação.
A Globo ficou aguardando até que, na sexta-feira à tarde, Greenwald mandou um e-mail afirmando que não recebeu nenhuma resposta da Globo e que devia supor que a emissora não estava interessada em reportar este material. Como Greenwald, no e-mail, continuava a sonegar o teor e origem da “bomba”, não houve mais contatos. Não haveria como assumir qualquer compromisso de divulgação sem conhecimento do que se tratava.
No domingo, seu site, o Intercept, publicou as mensagens atribuídas ao ministro Sergio Moro e procuradores da Lava-Jato, assunto que mereceu na mesma noite destaque em reportagem de mais de cinco minutos no Fantástico (e depois em todos os telejornais da Globo).
Na segunda, uma funcionária do Intercept sugeriu que o programa Conversa com Bial entrevistasse um dos editores do site para um debate sobre jornalismo investigativo. Como o próprio site anunciou que as publicações de domingo eram apenas o começo, recebeu como resposta que era conveniente esperar o conjunto da obra, ou algo mais abrangente, antes de se pensar numa entrevista.
Por tudo isso, causam indignação e revolta os ataques que ele desfere contra a Globo na entrevista publicada na Agência Pública. Se a avaliação dele em relação ao jornalismo da Globo e a cobertura da Lava-Jato nos últimos cinco anos é esta exposta na entrevista, por que insistiu tanto para repetir “uma parceria vitoriosa” e ser tema de um dos programas de maior prestígio da emissora? A Globo cobriu a Lava-Jato com correção e objetividade, relatando seus desdobramentos em outras instâncias, abrindo sempre espaço para a defesa dos acusados. O comportamento de Greenwald nos episódios aqui narrados permite ao público julgar o caráter dele".
Atualizado no dia 12 de junho de 2019 às 14h11.
Edição: Brasil de Fato