Lincoln Secco é professor de história contemporânea na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Nos últimos anos, tem estudado a ascensão do que ele classifica como um movimento neofascista em terras brasileiras. Entrevistado pelo Brasil de Fato, o historiador falou sobre as manifestações deste domingo (26), convocadas em apoio ao presidente Jair Bolsonaro (PSL).
Secco avalia que, tendo características semelhantes aos dos governos fascistas clássicos, o "bolsonarismo" precisa mobilizar permanentemente sua base social. O professor também argumenta, no entanto, que este núcleo duro do governo perde força por não contar com o apoio da mídia hegemônica e por ter provocado -- com políticas equivocadas -- um racha entre os próprios movimentos que impulsionaram sua eleição.
:: Bandeiras difusas e racha entre apoiadores podem esvaziar manifestação pró-Bolsonaro ::
Confira os melhores momentos da entrevista:
Brasil de Fato: De modo geral, qual é sua impressão em relação às manifestações pró-Bolsonaro convocadas para este dia 26? Qual é o seu principal objetivo? Quais são as chances de que este objetivo seja contemplado?
Lincoln Secco: Não é a primeira vez na história recente que um governante tenta mobilizar a população em defesa do seu mandato. Fernando Collor de Melo, diante do crescimento da oposição popular nas ruas, fez uma convocação semelhante, para que as pessoas fossem [às ruas] em defesa da sua permanência no poder. Foi um fiasco.
Qual é a diferença para o bolsonarismo? Ele é um movimento neofascista. Uma vez no poder, depende de uma mobilização permanente da sua base política.
Vai dar certo? É difícil que ele consiga mobilizar os seus apoiadores mais amplos que se manifestaram em 2018. Ao contrário de manifestações de direita anteriores, essa não tem o apoio explícito dos meios de comunicação de massa, especialmente da Rede Globo.
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Em segundo lugar, agora o bolsonarismo não é mais estilingue, é vidraça, e está comandando um governo que tem uma popularidade decrescente, em função da recessão que o país vive, da elevada taxa de desemprego, do não cumprimento da promessa de melhoria da segurança e de apontar como perspectiva para a população uma reforma impopular e antipopular, que é a da Previdência.
Grupos como o MBL e o Vem Pra Rua, assim como parlamentares do PSL, não aderiram à convocatória dos protestos. Por vezes, usaram inclusive as redes sociais e a imprensa para criticá-los. O que essa divisão significa?
Os movimentos da nova direita, que despontaram a partir de 2013, passaram por um processo esperado de institucionalização. Ou seja, seus principais líderes se tornaram vereadores, deputados, políticos estabelecidos, e perderam o encanto da crítica da política. Esse elemento de natureza ideológica explica uma divisão com o bolsonarismo, que, mesmo no poder, mantém uma perspectiva de crítica da chamada velha política e de mobilização permanente da sua base social.
Um segundo elemento que explica essa divergência no seio da direita diz respeito ao modus operandi do bolsonarismo. Esses políticos jovens, de direita, que se estabeleceram no DEM, no PSDB e mesmo no PSL, aderiram perfeitamente ao liberalismo conservador tradicional. E as práticas confusas do bolsonarismo no governo -- especialmente na área externa, na educação e na relação com o Congresso -- atrapalham a efetivação da agenda liberal conservadora.
Portanto não há uma divergência de fundo ou de essência, o que existe é uma divergência de método.
Na semana passada, setores da base de Bolsonaro nas redes sociais vinham levantando bandeiras como o fechamento do Congresso e do STF. O senhor acredita que os protestos possam ser parte de uma escalada autoritária desenhada pelo núcleo do governo?
É típico de movimentos fascistas testar o ambiente democrático no qual eles surgem. Nós não podemos nos enganar e esquecer que os movimentos do tipo nascem dentro da democracia política, ainda que em um momento de descrédito das instituições liberais.
O fascismo italiano não chegou ao poder a partir de um golpe de Estado. A marcha sobre Roma foi um blefe que levou Mussolini a ser convidado ao poder. Da mesma forma, o partido nazista se alimentou dentro das instituições políticas liberais, mas, ao mesmo tempo, testava essas mesmas instituições. O tempo todo provocavam e recuavam.
Então, é esperado que o bolsonarismo no poder vá o tempo todo testar as instituições. Ele pode ou não ter sucesso, mas é da natureza dele que vá provocar o tempo inteiro um clima de guerra política e tentativa de desestabilização e destruição das instituições democráticas. Portanto, faz parte de um objetivo de uma escalada autoritária. Agora, em uma situação muito difícil, porque o movimento popular começa a reagir.
Com a crise política que assola o governo, o presidente corre risco de cair?
Alguns cenários podem ser desenhados, embora eles não deem conta da riqueza da realidade que vivemos, [porque] pode acontecer algo totalmente imprevisto.
O primeiro cenário é de uma renúncia a la Jânio Quadros, que era um presidente de discurso exótico, prática esdrúxula e dificuldade de relacionamento com o Congresso. [Ele] tentou usar a renúncia como forma de mobilizar setores militares e parte da população contra as instituições, dizendo que era vítima de "forças ocultas".
O segundo cenário diz respeito ao impeachment de Fernando Collor de Melo. Ali o Congresso manteve o vice-presidente que, na prática, implementou a essência do programa liberal de Collor, depois continuado por Fernando Henrique Cardoso.
Isso nos faz voltar àquilo que já disse anteriormente: as divergências nunca são de essência ou de fundo. A classe dominante só se divide em torno de métodos. Existem oligarquias que são dissidentes e outras que representam a corrente principal.
Um outro cenário possível que está se desenhando é o do parlamentarismo, também bastante difícil para os conservadores. No sistema parlamentarista, o presidente da república tem que ser uma figura mais moderada e discreta. As disputas políticas ocorrem no parlamento, enquanto que o presidente precisa representar um equilíbrio perante as instituições e poderes constituídos.
Bolsonaro não tem nenhuma dessas prerrogativas. [Ele é] um presidente que tem muita dificuldade de trabalhar, porque passou sua vida política frequentando o baixo clero do Congresso sem lidar com grandes questões nacionais e internacionais. Ele não tem apetite pelo cargo, não mantém uma agenda que se exige de um presidente, não tem paciência para conversas com políticos de diversas tendências ideológicas, e já declarou que não tem muitas qualidades e que o Brasil é ingovernável.
Então, ele dá vários sinais de que poderia desistir ou tentar uma espécie de auto-golpe. Mas nós temos que levar em consideração que a cassação da chapa, o parlamentarismo ou uma renúncia não vão resolver o problema da recessão, a não ser que haja uma mudança de política econômica, e nenhuma dessas forças políticas que querem dar uma suposta solução para a crise, pretendem resolver a sua essência.
Nesse cenário, o que a esquerda pode fazer?
Para a esquerda não existem perspectivas imediatas. Ela só pode apostar no crescimento e fortalecimento das mobilizações populares contra os cortes na educação, em defesa da Previdência pública e não poderá ingressar em nenhum tipo de acordo de cúpula que não passe pela perspectiva de novas eleições e liberdade do presidente Lula.
Me parece que a esquerda acha que tem tanto capital político acumulado que se esforça todos os dias para destruí-lo com declarações desastrosas como a do governador da Bahia, em relação a cobrança de mensalidades em universidades, ou a declaração confusa do tesoureiro do PT, que coloca em segundo plano a campanha Lula Livre, ou aproximações do governador do Ceará com a presidência da república.
Essas coisas precisam ser evitadas, e a esquerda precisa centrar fogo na mobilização popular e não esperar uma solução institucional por cima que, mesmo restrita aos setores conservadores, não deve acontecer em um prazo curto. A não ser que haja um elemento imprevisto como a renúncia do presidente ou alguma catástrofe política que possa se abater sobre o país. Uma outra catástrofe, porque a eleição de Bolsonaro foi a primeira.
Edição: Aline Carrijo