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“A maior bandeira de luta é pela terra”, afirmam povos indígenas em audiência pública

As críticas ao atual presidente da República estiveram presentes em diversas falas na audiência

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
"É preciso denunciar o estado brasileiro. "
"É preciso denunciar o estado brasileiro. " - Iago Barreto

A cor mais vibrante era o vermelho. Vermelho do urucum que tomou a sala do complexo de comissões da Assembleia Legislativa do Ceará, durante a tarde da quarta-feira (22), no rosto dos indígenas das 14 etnias reconhecidas no estado do Ceará: Anacé, Gavião, Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Kanindé, Kariri, Pitaguary, Potiguara, Tapeba, Tabajara, Tapuia-Kariri, Tremembé, Tubiba-Tapuia e Tupinambá. Estavam presentes ainda representantes do povo Karão – que tem o seu processo de reconhecimento já em fase de conclusão, e o povo Tabajara Quixelô que está em busca de iniciar o processo de reconhecimento. 

A sala ficou pequena e foi preciso abrir mais um espaço para dar conta de comportar o público expressivo. A audiência pública, uma requisição dos próprios povos indígenas, tratou sobre a situação dos povos indígenas no estado do Ceará. “A maior bandeira de luta é pela terra, mas não basta só demarcação, desintrusão e homologação. A gente precisa ter projeto para trabalhar na terra”, disse Juliana Jenipapo-Kanindé, coordenadora da 
Associação das Mulheres Indígenas no Ceará (AMICE), que abriu a fala dos indígenas durante a audiência. E continuou: “Nós não queremos o peixe, queremos a rede pra poder pescar. Quando a gente pensa que ganhou uma causa, tem outro povo perdendo outra. Pedimos ao povo cearense apoio para garantir nossos direitos”. 

Estiveram compondo a mesa da audiência o deputado Renato Roseno (PSOL) – presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia, comissão que atendeu à solicitação da audiência pública –, os também deputados Elmano Freitas (PT), Acrísio Sena (PT), Augusta Brito (PCdoB) e Erika Amorim (PSD); Juliana Jenipapo-Kanindé, coordenadora da Associação das Mulheres Indígenas no Ceará (AMICE); Ezequiel Tremembé, representando a Comissão da Juventude Indígena do Ceará (COJICE); Ricardo Magalhães de Mendonça, do Ministério Público Federal (MPF); Lucas Guerra, do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza (CDPDH); Weibe Tapeba, liderança indígena, advogado e vereador (Caucaia);  Zelma Madeira, da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para Promoção da Igualdade Racial (Ceppir); Magnólia Said, do Centro de Pesquisa e Assessoria – Esplar; e Lourdes Vieira, da Associação para Desenvolvimento Local Co-produzido – Adelco. 

Foi entregue para os deputados e deputadas presentes durante a audiência um protocolo de intenções com reivindicações centrais para os povos indígenas do Ceará (confira ao fim da matéria). As críticas ao atual presidente da República estiveram presentes em todas as falas indígenas durante a audiência. “O maior chefe da nação é o maior perseguidor dos povos indígenas. É preciso denunciar o Estado brasileiro. Estamos vindo com uma preocupação muito grande. É preciso montar um plano estratégico de apoio aos povos, que o governo do estado do Ceará se comprometa com essa questão”, afirmou Weibe Tapeba.  

Dificuldades e ameaças

Dentre as dificuldades encontradas pelos povos indígenas está a lentidão no processo de demarcação das terras – o Ceará só possui uma terra indígena com o processo de demarcação finalizado; racismo e preconceito no serviço público – os indígenas contaram que sempre que buscam dar entrada em algum benefício são confrontados sobre a legitimidade da identidade indígena por usarem roupas; a estrutura precária de muitas escolas indígenas; a falta de concurso específico para professores indígenas; a entrada de facções criminosas em terras indígenas; a investida da especulação imobiliária nos territórios indígenas, dentre outras. 

Sobre a investida da especulação imobiliária em terras indígenas, o povo Tremembé da Barra do Mundaú (Itapipoca/CE) fez, durante a audiência, denúncia da volta das ameaças e conflitos com o grupo empresarial que, desde 2002, deseja construir um complexo turístico chamado Nova Atlântida em cima de todo o território Tremembé em Itapipoca. No último dia sete de maio uma estrutura construída pelos indígenas na divisa da terra indígena com a praia da Baleia foi incendiada. “Nossa resistência não vai calar. O litoral, e não só as terras indígenas, tem sido protegido pelo nosso povo”, afirma Ezequiel Tremembé.

Uma requisição feita historicamente pelos povos indígenas do Ceará apareceu novamente durante essa audiência pública: o reconhecimento público e oficial da existência dos povos indígenas no Ceará, visto que existe um relatório provincial, datado de 1863, que decretou a não existência de indígenas no estado. Para a liderança Dourado Tapeba, outro tema importante a ser lembrado é a reforma da previdência que afetará de forma negativa todos os povos indígenas no Brasil. Ainda sobre a reforma da previdência, Magnólia Said, do Esplar, lembra que os indígenas se enquadram no perfil dos segurados especiais: “Dentre os direitos que os segurados especiais têm existe a aposentadoria por idade e o auxílio doença. Isso vai acabar se essa reforma passar. Ela vai significar a morte de muita gente”.  

MP 870

Outra ameaça nacional aos povos indígenas é a Medida Provisória (MP) 870/2019. Na noite de quarta-feira (22) o movimento indígena teve uma vitória, pois de acordo com o relatório aprovado pelo plenário da Câmara, a Fundação Nacional do Índio (Funai) volta a ter a competência de demarcar terras indígenas e a ser subordinada ao Ministério da Justiça, funções que o texto original da MP alterava. No entanto, o texto ainda precisa ser aprovado pelo Senado e pelo presidente da República. Para o procurador da República, dr. Ricardo Magalhães, “a MP 870 padece de sérios vícios de inconstitucionalidade. Ela parte de uma visão preconceituosa, uma visão que quer incentivar o integracionismo. O que significa isso? Reconhecer que a cultura indígena é uma cultura em extinção. É como se estivesse ressuscitando a velha política produzida, em matéria de direitos indígenas, praticada no século passado.”. 

Outra questão levantada pelo procurador da República foi a falta de consulta prévia e participação dos povos indígenas que, segundo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, deveria obrigatoriamente ter ocorrido para a existência de uma Medida Provisória de tal natureza. “Essa Medida Provisória foi empurrada abaixo sem nenhuma discussão com os principais afetados que são os índios. Mais um problema grave dessa MP é que ela foi promovida para atender interesses específicos do setor empresarial e do agronegócio”, afirma o procurador. 

Ao final da audiência pública, que contou com o comprometimento dos políticos e organizações presentes no intuito da articulação e mediação para a garantia das reivindicações dos indígenas, foi lançado o livro Violações de direitos indígenas no Ceará – Terra, Educação, Previdência, Mulheres. Com apresentação de Ceiça Pitaguary e prefácio da professora Isabelle Braz (Antropologia – UFC), o livro aborda temas como as legislações federais anti-indígenas, um estudo populacional sobre os povos indígenas no Ceará, educação escolar indígena, a participação das mulheres nas conquistas de direitos, entre outros. 

Confira abaixo os pontos apresentados no Protocolo de Intenções entregue durante a audiência pública na Assembleia Legislativa do Ceará:

1. Que a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará possa promover o reconhecimento público de defesa dos direitos dos povos indígenas e valorar a presença desses povos no Ceará em contraponto ao Relatório Provincial de 1863 que decretou a não existência de indígenas em nosso Estado;

2. Que os parlamentares possam publicamente declarar o seu posicionamento em favor dos povos indígenas e em contrariedade a parte da Medida Provisória 870/2019, especialmente as medidas que transfere a FUNAI do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e transfere a atribuição de demarcação de Terras Indígenas da FUNAI para o Ministério da Agricultura, comandado por inimigos históricos dos Povos Indígenas, bem como de todas as tentativas de enfraquecimento dos mandamentos constitucionais de proteção aos territórios dos Povos Indígenas e aos Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário;

3. Que o Estado do Ceará possa se comprometer com a demarcação dos territórios indígenas inclusive realizando convênios com a FUNAI, através do IDACE, para realização das demarcações físicas e levantamento fundiário;

4. Que os signatários lutem conosco pelo fortalecimento do subsistema de atenção à saúde indígena e contra qualquer tipo de enfraquecimento desse sistema, inclusive repudiando a municipalização da saúde indígena e articulando a bancada de deputados federais para atuarem com o mesmo comprometimento;

5. Que essa Casa Legislativa possa assumir um compromisso com a educação escolar indígena
através da realização do Concurso Público diferenciado para professor indígena atuando ainda para viabilizar a criação da categoria de professor indígena e a instituição de um Plano de Cargos, Carreira e Salários para os profissionais da Educação escolar Indígena;

6. Que a vida dos povos indígenas possam ser valorizadas e protegidas através de uma política de segurança pública efetiva nas Terras Indígenas, visando o combate ao crime organizado, através da implantação de bases móveis ou outros equipamentos, formação de pelotões de segurança comunitária, bem como o fortalecimento da proteção as lideranças indígenas ameaçadas por sua militância, vale salientar que algumas lideranças já sofreram ameaças, inclusive a bala, e outras estão ameaçadas vivendo em situação de vulnerabilidade e temendo por suas próprias vidas;

7. Criação no âmbito da Assembleia Legislativa do Ceará da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas sendo criada também articulação para que os Deputados Federais cearenses possam compor a Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas da Câmara dos Deputados;

8. Atuação da Assembleia Legislativa para que as Políticas desenvolvidas pela Secretaria de
Desenvolvimento Agrário cheguem no chão das diversas aldeias indígenas, já que até o momento de forma geral, os Povos Indígenas têm sido excluídos das principais políticas desenvolvidas pela SDA;
9. Garantir a criação de um Plano Estadual de Cultura para os Povos Indígenas, com a previsão de orçamento para o fomento as diversas formas de manifestações e expressões culturais, valorizando nossos sábios indígenas, festas, rituais e lugares de memória, bem como criando no âmbito da Secretaria de Meio Ambiente, ações efetivas para a recuperação de áreas degradas, implantação de viveiros de mudas em escolas ou associações indígenas, ações de educação ambiental e projetos de revitalização as Unidades de Conservações que incidem em Terras Indígenas;

10. Realizar estudos e pesquisas sobre a situação dos povos indígenas, a partir de diagnósticos e levantamento de informações que possam subsidiar os próprios povos indígenas o poder legislativo e o poder executivo estadual para a adoção de medidas efetivas com vistas a apoiarem os povos indígenas através de documentos e demais publicações a serem produzidas pelo Instituto de Estudos e Pesquisas sobre o Desenvolvimento do Estado do Ceará – INESP;

11. Comprometem-se em acompanhar o cumprimento da Agenda Positiva dos Povos Indígenas que foi entregue ao governador Camilo Santana e que busca a efetivação de políticas públicas para os povos indígenas do Ceará parte dela já descrita nesse protocolo de intenções e articular um novo encontro dos Povos Indígenas com o chefe do Poder Executivo;    
 

Edição: Monyse Ravena