Dois provérbios populares definem o momento político atual.
O primeiro provérbio começa definindo raiva -- “o veneno que a gente toma achando que o outro vai morrer”.
Jair Bolsonaro foi eleito por raiva que hoje destroça cada um de nós lentamente, seja pela perda diária de diversos direitos e conquistas, seja pela derrota psíquica ou pela desesperança que, ironicamente, nos une agora.
Por raiva, nos tornaremos um país de cidadãos armados, sem segurança e sem confiança na nossa própria gente.
Por raiva, a educação pública se tornou refém de interesses políticos. Se tornou gasto e não mais investimento em saúde, meio ambiente, tecnologia, pesquisa. Por raiva, os espaços legítimos de construção do conhecimento, da esperança e do futuro estão sendo dizimados.
Por raiva, esse futuro será preenchido com mais horas de trabalho opressor, com menos lazer, sem direito a vivenciar a velhice com saúde e desfrutar dos afetos com dignidade.
Por raiva, nossas instituições e empresas públicas serão depredadas, oferecidas em bandejas privatizantes que enriquecem obscuras e corruptíveis contas bancárias e extinguem a soberania nacional.
Por raiva, os espaços políticos de participação e fomento a cidadania darão lugar ao vazio do isolamento que nada propõe, nada constrói, nada compartilha, nada critica.
Por raiva, a cultura brasileira, as artes, a música, o teatro, o cinema, a dança, os patrimônios materiais e imateriais e o pensamento criativo agonizam.
Por raiva, morreremos mais. Sucumbiremos mais sem um sistema único de saúde -- eletrocutados, baleados, esfomeados e contaminados com mais venenos -- agrícolas e industriais.
Por raiva, nossas florestas, rios e mares e a nossa biodiversidade está ameaçada e quem ainda se propõe a cuidar delas – os agricultores, indígenas, os povos das florestas e ribeirinhas, os ambientalistas - serão aniquilados.
Por raiva, nos tornamos silenciosos e coniventes com a censura, a morte e o exílio de homossexuais, negros, mulheres, líderes ambientalistas, jornalistas e políticos de oposição, intelectuais, artistas e professores.
Por raiva, corremos o risco de nos tornarmos um Estado confessional governado por fundamentalistas religiosos, opressores da diversidade de crenças e controladores de nossos corpos e prazeres.
Por raiva, sentimos vergonha de quem nos representa como nação e endossamos, pelo silêncio, um governo destituído de sensatez, de racionalidade, de senso democrático e de tolerância, baseado na mesma odiosidade que nos moveu nesse abismo. Um Estado que faz armas com as próprias mãos.
Estamos imobilizados pelos sentimentos mais anestesiantes -- raiva e medo --, que nos separam como povo, nos tornam descrentes e céticos, reféns de uma ditadura do ódio que domina aos que “calam, e, consequentemente, consentem”.
* Elaine de Azevedo é doutora em Sociologia Política e professora no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Edição: Daniel Giovanaz