Numa jogada surpreendente, Cristina Fernandez de Kirchner anunciou neste sábado (18) que não vai ser candidata a presidente nas próximas eleições de outubro deste ano. Ela será a vice-presidente do agora candidato Alberto Fernandez. Um movimento que deixa todo o cenário político nacional de boca aberta.
Comecemos pelo início. O governo neoliberal de Mauricio Macri foi e ainda é um profundo fracasso. Hoje, a Argentina é mais pobre, está mais endividada, tem menos capacidade econômica, tem uma minúscula participação internacional e mais gente morando nas ruas e com fome. Neste cenário lamentável, Cristina Kirchner foi voltando aos poucos. Talvez a expressão máxima do seu regresso ao público massivo tenha sido o sucesso editorial do seu livro Sinceramente, lançado na última semana, durante a feira do livro de Buenos Aires. Sim, Cristina voltava a estar na boca do povo.
As últimas pesquisas de opinião são determinantes: ninguém quer Macri na presidência, nem os opositores nem seus próprios eleitores. Ele é a imagem do fracasso. Segundo as pesquisas, mais de 57% dos argentinos votaria num partido opositor. Quase o 80% pensa de forma negativa a gestão do governo Macri. Na mesma pesquisa, Cristina aparece como a ganhadora em todos os cenários. Contra qualquer candidato, tanto no primeiro, como segundo turno.
Essa imagem negativa de Mauricio Macri não é por acaso. Segundo um informe recente, "em apenas três anos, o Cambiemos, partido de Macri, emitiu mais dívida do que em toda a década Menemista e quase o dobro que nos últimos dez anos de Kirchnerismo (US $ 71.000, 63.000 e 38.000 milhões, respectivamente)”. Assim, Macri é o líder do endividamento nacional. A inflação elevada (47%), o dólar, que passou de 9,5 pesos a 48 pesos, e a recessão econômica na Argentina elevaram o índice de pobreza urbana do país para 32% no segundo semestre de 2018, segundo dados do Indec. Neste sentido, e para ter uma imagem da profundidade da crise econômica, trata-se do número mais alto desde a crise econômica de 2001. Lembremos que o slogan da campanha presidencial de Mauricio Macri em 2015 foi "Pobreza Zero". Como indicou Cristina Kirchner no seu recente livro, "Macri é o Caos".
Apesar do desastre econômico e social atual da argentina, a imagem de Cristina Fernandez de Kirchner ainda gera antipatia em setores mais reacionários. A ex-presidenta sofre uma campanha de difamação e uma estratégia de lawfare que nos remete ao caso Lula e outros presidentes e políticos de esquerda na América Latina.
Hoje, num vídeo no Youtube, Kirchner anunciou sua candidatura a vice-presidente, deixando a candidatura para presidente ao advogado Alberto Fernández, do Partido Justicialista (PJ). No vídeo, Cristina declara: “Pedi a Alberto Fernández que encabeçasse a fórmula que vamos integrar: ele como candidato a presidente e eu como vice candidata para participarmos das próximas eleições primárias, abertas, simultâneas e obrigatórias”.
Mas quem é o Alberto Fernández? Ele foi o chefe da casa civil durante todo o mandato de Néstor Kirchner (2003-2007), sua mão direita. Um homem de diálogo e pontes.
A ideia desta estratégia é colocar um homem leal e com capacidade política na dianteira da chapa presidencial para reduzir a rejeição que produz ainda em certos setores a presença de Cristina. Além disso, a possibilidade de criar uma coalização política mais ampla e que possa ganhar as eleições em outubro deste ano.
Cristina Kirchner alega que o mundo mudou, e ela também. Que é preciso pensar numa estratégia neste novo cenário mundial. Assim, segundo suas palavras “ não se trata de uma volta ao passado”, mas uma fórmula para poder tomar decisões que sejam compreendidas, aceitas e compartilhadas pelo povo, com o objetivo de representar com compromisso o interesse nacional. Nesta linha, indica a senadora, a proposta é um novo contrato social, numa nova ordem, onde prime a realização coletiva e não o individualismo e o egoísmo. Toda uma declaração de princípios, oposto aos do atual presidente.
O lançamento da fórmula Alberto Fernández e Cristina Kirchner chega ao mesmo tempo da declaração do presidente Bolsonaro, que indicou em conversa com o ex-presidente dos Estados Unidos , George W. Bus, que “na Argentina há a possibilidade de voltar a senhora ex-presidente e, em voltando, nós podemos correr o risco de, apesar da economia deles não estar indo bem e o populismo voltar àquele local, nós termos uma nova Venezuela no sul da América do Sul", disse. Na mesma linha, o filho de Bolsonaro, o deputado federal Eduardo, ressaltou que "se ela vier a ser eleita, o Brasil certamente vai reconhecer, sem problema nenhum. Mas não vai ser assim um encontro caloroso, como é hoje com o Mauricio Macri, justamente porque a maneira dela pensar a parte econômica vai acabar por barrar vários projetos de integração nacional".
O mundo está em plena disputa e transformação, e na América Latina no contexto de um processo de restauração conservadora autoritária, o lançamento da fórmula presidencial é um desafio múltiplo da esquerda e do progressismo regional.
*Andrés del Río é Professor Doutor de Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF)
Edição: Guilherme Henrique