Em parecer produzido na última quinta-feira (9), técnicos da consultoria legislativa do Senado apontaram que o Decreto 9.785/2019, que amplia o porte de armas no país, “extrapola” o chamado “poder regulamentar”, que diz respeito à prerrogativa dada pela Constituição Federal ao chefe do Poder Executivo para produzir regulamentos e decretos sem que seja preciso enviar uma proposta ao Legislativo.
A medida, editada pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) no último dia 7, estende a autorização para que profissionais de 20 categorias possam andar armados sem que seja preciso comprovar essa necessidade por conta da atividade profissional ou de eventuais ameaças à integridade física.
Estima-se que cerca de 19 milhões de pessoas terão porte facilitado, incluindo, por exemplo, agentes de trânsito, conselheiros tutelares, caminhoneiros, repórteres policiais, agentes penitenciários e políticos com mandato.
Ao analisarem o texto do dispositivo, os técnicos Daniel Osti Coscrato e Jayme Benjamin Sampaio Santiago, que assinam o parecer, concluíram que o decreto contrasta com o Estatuto do Desarmamento, em vigor desde 2003, segundo o qual a necessidade do porte precisa ser comprovada junto à Polícia Federal (PF).
Os consultores argumentam que “se não fosse assim, o decreto poderia contemplar qualquer pessoa, entidade ou categoria, presumindo, de forma absoluta, que ela necessitaria do porte de arma de fogo para o exercício da sua atividade profissional ou para a defesa da sua integridade física”.
“Como vimos, esse não foi o escopo do Estatuto do Desarmamento. Como o próprio nome dado ao diploma legal diz, o objetivo foi o de desarmar a população, vedando o porte de arma de fogo em todo o território nacional. Por exceção, foram elencadas, de forma estrita, algumas categorias, pessoas ou entidades que poderiam obter o porte de arma de fogo”, acrescenta o parecer.
A análise foi solicitada pelos senadores Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e Fabiano Contarato (Rede-ES), críticos da medida de Bolsonaro. Na semana passada, a Rede também se mobilizou junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) que questiona o decreto.
Iniciativa semelhante foi tomada pelo Psol, que ajuizou, na última sexta (10), uma ação direta de inconstitucionalidade (Adi) pedindo a suspensão imediata do dispositivo. O partido afirma que a medida é “arbitrária” e que Bolsonaro não “respeitou as próprias competências” porque, como o Estatuto do Desarmamento é uma lei, ele só pode ser alterado pelo Congresso Nacional, e não por decreto presidencial.
No texto, o Psol destaca ainda que a iniciativa vai na contramão do combate à violência e das políticas de segurança pública porque coloca a população em risco, ferindo o direito à vida e a dignidade da pessoa humana.
Os dois processos foram distribuídos para a ministra Rosa Weber, que irá relatar o caso. Ainda na sexta-feira (10), ela pediu que Bolsonaro e o ministro da Justiça, Sérgio Moro, apresentem explicações sobre o decreto dentro de um prazo de cinco dias.
“Tenho certeza de que isso é uma sinalização pra que, dentro em pouco, esse decreto que arma a sociedade e tenta jogar a responsabilidade da segurança pública para o cidadão seja derrubado. É a única decisão possível para um ato inconstitucional e que ofende a todos”, disse Randolfe Rodrigues.
PDLs
A iniciativa também está sendo questionada no Congresso Nacional por meio de projetos de decreto legislativo (PDLs) que pleiteiam a anulação da medida. Segundo levantamento da consultoria Patri Políticas Públicas, já são cerca de 20 pedidos dessa natureza em tramitação.
Na última quinta (9), o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que a medida de Bolsonaro teria “algumas inconstitucionalidades” e disse que está em contato com o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, responsável pela articulação política entre o Executivo e o Legislativo, para tentar uma negociação sobre tais pontos e evitar que o decreto seja alvo de mais uma derrota do governo no plenário da Casa.
A declaração veio em meio ao calor dos debates sobre o tema, que esquentou o jogo entre governo e oposição, e após um parecer da Secretaria-Geral da Mesa (SGM) da Casa que apontou problemas no decreto.
SGM
Solicitado por Maia, o texto da SGM assinala que o dispositivo é ilegal porque promove mudanças que não poderiam ser feitas via decreto.
"A lei não permite que norma infraconstitucional estabeleça presunção absoluta ou relativa de cumprimento desse requisito. A lei é clara no sentido de que deve haver a demonstração efetiva da necessidade do porte, devendo cada caso concreto ser analisado pelo órgão competente", diz o parecer, assinado pelo secretário-geral da Mesa, Leonardo Augusto de Andrade Barbosa.
A nota técnica também questiona, por exemplo, o fato de o decreto não impor limite temporal nem territorial para o porte de arma. Também aponta problemas na autorização concedida a praças das Forças Armadas, destacando que a legislação vigente determina que o porte para agentes que atuam como praças é passível de restrições que somente podem ser impostas por cada força armada.
O parecer sublinha ainda que “outros dispositivos do decreto suscitam dúvidas que carecem de análise mais aprofundada”, mas não detalha a afirmação.
Articulação política
Os laudos técnicos das consultorias da Câmara e do Senado somados às intensas críticas de especialistas e atores da sociedade civil organizada sobre o decreto tendem a causar desgaste ao governo nos próximos dias ou semanas.
Apesar do apoio de integrantes da bancada da bala, patrocinadora ideológica desse tipo de medida, Bolsonaro deverá consumir parte do capital político junto a aliados para tentar sustentar a medida. A essa articulação se somam também as dificuldades atuais do governo, que ainda não conseguiu consolidar uma base de partidos aliados na Câmara e trabalha para tentar sustentar a defesa da reforma da Previdência, que é impopular entre segmentos sociais e indigesta para boa parte dos parlamentares.
Além disso, o Planalto amarga também as duas derrotas sofridas na última semana, quando a comissão mista que avalia a Medida Provisória (MP) 870 retirou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Justiça (MJ) e o devolveu ao Ministério da Economia – que hoje responde pelas atribuições do Ministério da Fazenda, extinto por Bolsonaro no início do ano.
O governo também saiu derrotado em relação ao trecho da MP 870 que trata da Funai. Antes ligado ao MJ, o órgão hoje é vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e é alvo de uma intensa queda de braço entre ruralistas e opositores. Na votação do relatório da MP na ultima quinta (9), foi aprovado o retorno da Funai para o MJ.
A decisão ainda será avaliada pelo plenário do Congresso Nacional, mas calçou alvoroço na órbita de apoiadores do governo, que tem a bancada ruralista como um de seus braços. Nesse contexto, as investidas de Bolsonaro pela manutenção do decreto das armas poderão ter um custo político mais alto que o inicialmente previsto pelo Planalto. Para o líder da bancada do PT na Câmara, Paulo Pimenta (PT-RS), o cenário pode fortalecer a luta da oposição pela derrubada da medida.
“Ele tentou, num momento de fragilidade o governo, desviar a pauta, mas o tiro saiu pela culatra. Nós temos condições de derrotar o decreto ”, acredita o petista.
“Palanque”
Para o deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), vice-líder da bancada do PT, o Decreto 9.785/2019 serve de cortina de fumaça para o governo, que estaria tentando retirar dos holofotes as fragilidades da gestão.
“Eu acho que ele sabia que é inconstitucional, mas, como ele está na defensiva e não tem nenhum programa ou proposta pra gerar empregos, pra gerar renda per capita familiar e melhorar a vida do país, ele volta aos temas da pauta dos costumes e à pauta eleitoral dele. Ele não desceu do palanque”, avalia o oposicionista.
Edição: Rodrigo Chagas