Regime de capitalização entrega cada um à sua própria sorte
O capitalismo precisa se reinventar. Essa é a função das crises que movem o modo de produção capitalista. Nessa crise profunda e prolongada, ao invés de se reinventar – como na crise do fim do século XIX (1870) ou a crise do entre guerras (1929) – o capitalismo faz uma ofensiva global predatória.
A agenda da ofensiva neoliberal global se concentra na apropriação privada dos bens da natureza e na ofensiva sobre os direitos conquistados históricamente pela classe trabalhadora. Na liberalização total do Capital, com a privatização de empresas estatais, privatização dos serviços públicos e dos sistemas de proteção social. Ofensiva essa que necessita de um novo ordenamento jurídico de defesa dos direitos do capital em detrimento aos direitos dos trabalhadores. A América Latina e o Brasil são estratégicos para essa agenda ser realizada.
Na crise nem todos perdem, alguns capitalistas lucram muito com ela, não sendo a agenda neoliberal uma rota de saída dessas contradições, mas sua intensificação. Como lembram Pedro Rossi, Esther Dweck e Ana Luíza Matos de Oliveira em seu livro sobre a política de austeridade, com a recessão e desemprego esses capitalistas garantem a redução das pressões salariais e ampliação de seus ganhos; com o corte de gastos e a redução das obrigações sociais garantem espaço para futuros cortes de impostos das empresas e das elites econômicas e; com a redução da quantidade e da qualidade dos serviços públicos aumenta a demanda de parte da população por serviços privados em setores como educação e saúde, o que aumenta os espaços de acumulação de lucro privado.
Por parte dos próprios intelectuais da direita a previsão é de uma nova recessão mundial, não se vislumbra a retomada das taxas de lucro mundiais a médio prazo. Há lacunas no debate econômico, que se manisfesta, por exemplo, no questionamento por parte de economistas ortodoxos sobre a eficiência da política macroeconomica de austeridade.
Nossa indagação é sobre a capacidade da classe trabalhadora de aproveitar essas brechas, ou seja, atuar nas contradições da crise no sentido de construir força social como condição para que os direitos conquistados historicamente não sejam transformados em negócios.
A classe trabalhadora vive uma situação desfavorável a nível mundial notadamente pela fragmentação que vivem tanto na produção como na sua representação política e pela dimensão de derrota ideológica a nível global.
A democracia esta em cheque. Da perspectiva política, o capital financeiro está mundialmente em uma ofensiva para adequar as instituições políticas e Estados Nacionais às suas necessidades de acumulação e a realidade de reestruturação da produção capitalista de valor. Se identifica uma tendência de avanço de governos de direita e avanço do conservadorismo, desde a eleição de Bolsonaro no Brasil, ao avanço da Aliança Republicana Nacionalista (Arena) em El Salvador. Nesse cenário qualquer resistência é reprimida seja por mentiras, desmoralização, fakenews, seja pela violência, repressão, coerção, criminalização da luta propriamente dita.
De modo que a classe trabalhadora encontra limites para atuar nas imensas contradições da crise capitalista e acumular força para outro projeto de sociedade.
Três elementos da economia do golpe no Brasil
No Brasil, o golpe vai, de medida em medida, arquitetando um patamar de luta de classes desfavorável a classe trabalhadora. O fim do Ministério do Trabalho, o fim da política de valorização do Salário Mínimo, a regulamentação da Emenda 19 que rege sobre o sistema de avaliação de desempenho que atinge notadamente os servidores públicos, O aprofundamento da abertura econômica e a generalização do processo de Terceirização, O Teto dos Gastos, a MP 873 que descapitaliza os sindicatos e a retirada dos Direitos historicamente conquistados por meio da Carteira Verde Amarela. Esse é um conjunto de medidas que tendem a consolidar o contrato individualizado patrão-empregado e neutralizar o papel dos sindicatos da mediação capital-trabalho. E agora, nessa ofensiva, busca destruir a Seguridade Social, com a privatização da Previdência Social.
O governo Bolsonaro precisa mostrar ao que veio.
Um primeiro elemento que queremos destacar é que estamos diante de uma mudança estrutural do Mercado de Trabalho no Brasil que tem como consequência o aumento efetivo e estruturado da informalidade e manutenção da taxa de desemprego.
A Reforma Trabalhista supostamente tinha o apelo de regularizar formas precárias de inserção ocupacional (como trabalho intermitente, jornada em tempo parcial, ampliação da terceirização, entre outros). Os dados mostram que, um ano após a entrada em vigor da reforma trabalhista, os resultados não foram os anunciados pelos seus defensores – nem criação de empregos e nem aumento da formalização dos contratos de trabalho.
Pelo contrário, manteve-se o contexto de um desemprego extremamente elevado e continuou prevalecendo um processo de desestruturação do mercado de trabalho, com aumento dos trabalhadores sem carteira assinada, da subocupação, do trabalho por conta própria (80% não têm CNPJ e somente 30% contribuem para a Previdência). A soma destes segmentos significa aproximadamente 40 milhões de ocupados, que estão na “ilegalidade”.
Essa tendência em curso no mercado de trabalho é um dos principais fatores de fragilização das contas previdenciárias, também afetadas negativamente pelo baixo crescimento, elevado desemprego e seus impactos negativos sobre o poder de compra dos rendimentos do trabalho.
As reformas previdenciária e trabalhista se retroalimentam na perspectiva de fragilizar o sistema de proteção social, num país já fortemente marcado pelas condições de insegurança no trabalho, nos rendimentos, na doença, na velhice. Com a reforma trabalhista diminui a base de incidência das contribuições relativas ao financiamento do sistema de proteção social (RGPS, FGTS, FAT etc.) e com a Reforma da Previdência as pessoas terão muito mais dificuldade de conseguir preencher os critérios necessários para acessar os benefícios da seguridade social, em que a elevação da idade média dos mais pobres para concessão deve-se fundamentalmente a impossibilidade de comprovar tempo de contribuição.
A lógica é regulamentação do trabalho precário, combinada com uma fragilização das instituições públicas e do sindicalismo, com alto desemprego, e tendência de destruir a seguridade pública, por meio do estrangulamento das suas fontes de financiamento.
O segundo elemento que colocamos em destaque é a destruição do modelo da seguridade social concebido na Constituição de 1988. A proposta de retirar da Constituição, diversas regras previdenciárias, sendo agora definidas por leis complementares, facilitando a sua aprovação no Legislativo. O sistema atual, baseado no princípio da solidariedade social, está sendo substituído por um regime de capitalização em que a aposentadoria fica vinculada à capacidade de poupança individual a ser administrado pelas instituições bancárias, com menor poder de controle pela sociedade, podendo certos pontos serem alterados por leis complementares.
O pano de fundo da reforma da previdência é a mercadorização dos direitos sociais, que se refere ao processo de privatização e a primazia das finanças em detrimento à indústria a medida em que o setor financeiro precisa de lastro objetivo e esse lastro tem sido os direitos sociais.
E o outro termo é a individualização dos direitos que se refere à ruptura de processos e estruturas coletivas que sustentam a promoção de direitos e a vigência de uma nova ordem em que o indivíduo fragmentado nas relações de produção, negocia diretamente com o capital a medida em que o Estado perde de forma acelerada sua capacidade de regulação da relação capital e trabalho.
O terceiro elemento da reforma que destacamos é o sistema de capitalização. É importante notar que, via de regra, estamos acostumados a fazer a análise e o embate a partir nos termos da Reforma de 1998: regra de acesso, idade mínima, sistema progressão, calculo beneficio, rendimentos etc. O que está por trás da Reforma da Previdência é um regime compulsório do Estado administrado pelo sistema privado, que prevê conta individual de capitalização para seguro desemprego e aposentadoria (previdência e seguridade social) e a apropriação privada de fundos públicos como SUS e o Fundeb .
Essa mudança colocaria a disposição do mercado financeiro um vultoso montante de recursos dos trabalhadores. Segundo estudo da Unafisco - Nacional, a previsão de faturamento médio anual das instituições financeiras seria de R$ 687 bilhões para os próximos setenta anos. Esse faturamento dos bancos se daria apenas com os recursos depositados pelos trabalhadores, arcando com todos os custos cobrados, sem nenhuma participação dos patrões, segundo a proposta do governo Bolsonaro.
A estratégia de passar de um regime de repartição para um de capitalização não evita o déficit nem sequer o reduz, mas ao contrário, o aprofunda perigosamente. Isso porque há um custo de transição, que é a perda de receitas que o sistema de repartição, existente hoje, sofre quando as contribuições dos novos ingressantes passam a se destinar às contas individuais do regime de capitalização. As receitas caem ao mesmo tempo em que é necessário continuar a pagar o estoque de aposentados. Portanto, no curto e longo prazos, um regime de capitalização aumenta o déficit da Previdência. Esse custo de transição costuma ser muito elevado. A equipe econômica do ministro Paulo Guedes não mostrou nenhuma estimativa desse prejuízo para a sociedade brasileira. Há, portanto, um vácuo no debate.
O regime de capitalização produzirá um resultado que já se sabe nocivo para grande parte da população que não conseguirá poupar, em função dos salários baixos, desemprego e trabalho intermitente, logo, poucos se aposentarão e, os que conseguirem, receberão benefícios de valores baixos, como demonstra a experiência da América Latina, em estudo apresentado pela OIT.
O regime de capitalização exime os capitalistas de participar da solução dos problemas sociais do país, entregando cada um à própria sorte. A reforma da Previdência não tem nenhuma relação com ajuste fiscal ou com a eliminação de privilégios. É preciso separar o debate do regime geral da previdência dos regimes próprios para abordar as distorções na previdência social.
É preciso sair das armadilhas do equilíbrio fiscal e disputar uma visão de mundo e uma visão sobre o papel da seguridade social para a sociedade brasileira. É preciso avançar no debate de taxar grandes fortunas, grandes heranças, o capital especulativo e cobrar os sonegadores. É preciso resgatar o direito de sonhar e disputar um projeto de país com direitos, democracia e soberania.
Edição: Luiza Mançano