Ricardo Antunes é um dos maiores especialistas brasileiros no tema do mundo do trabalho. Atualmente, é professor de sociologia do trabalho na Universidade Estadual de Campinas. Em seu último livro, intitulado O Privilégio da Servidão, Antunes desenhou um quadro da situação da classe trabalhadora na história recente do Brasil, a partir do fim da ditadura militar. O estudo se concentra no que ele chama de "novo proletariado de serviços", alavancado com o crescimento do trabalho digital, on-line e intermitente dos últimos anos.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o sociólogo falou sobre o futuro do trabalho, as características das relações trabalhistas no Brasil e os impactos da reforma trabalhista sobre esse cenário. "Se a classe trabalhadora, os movimentos sindicais, sociais e os partidos de esquerda não desenharem um outro modo de vida, daqui a dez anos eu vou dizer 'está muito pior'. Com o mundo da internet, todos podem ter um tipo de trabalho onde não tem mais limite de jornada, não tem mais dia e noite", avalia o sociólogo.
Antunes também deu pistas sobre as formas de resistência que os trabalhadores podem impor à retirada de direitos e à crescente proletarização marcada pela superexploração, que tem atingido não só os trabalhadores do fast-food, motoboys, trabalhadores de hotéis, trabalhadores dos hipermercados, mas também a categorias com maior renda média, como médicos e advogados.
Por fim, o professor enfatizou que a recuperação de uma política de conciliação de classes não é mais um caminho viável. "Na nossa ação, todo o oxigênio não pode estar voltado para a institucionalidade. Qual é a prioridade? Garantir representação parlamentar ou organizar a massa da classe trabalhadora?", provocou.
Leia a entrevista completa abaixo:
Brasil de Fato: Se você pudesse resumir, qual diria que é o perfil do trabalhador brasileiro hoje?
Ricardo Antunes: Aqui a classe trabalhadora, além de trabalhar longas jornadas de trabalho, é paga abaixo dos níveis necessários para sobrevivência. Isso é o que a caracteriza.
O que nós estamos vendo, nos últimos quarenta ou cinquenta anos, é uma explosão do setor de serviços. E uma explosão que se deve à privatização desse setor, ao fato dele gerar lucro, ao fato dele passarem a ser explorado pelas grandes corporações capitalistas, ao fato de que esse período marcou uma explosão do mundo informacional digital.
O resultado é um novo proletariado de serviços da era digital.
Esse proletariado é mais explorado do que aquele antigo trabalhador?
Não. O que acontece é que no setor de serviços há uma enorme proletarização, que atingiu não só os trabalhadores do fast-food, motoboys, trabalhadores de hotéis, trabalhadores dos hipermercados, mas também médicos, advogados...
Hoje, um jovem médico que é de família pobre vai ter que trabalhar em três ou quatro empresas de saúde para poder ganhar um salário que não é alto. Há jovens advogados perambulando como intermitentes nos escritórios para tentar uma causa. Agora imagine as profissões dos cuidados, as trabalhadoras domésticas, eletricistas, trabalhadores do Uber, entregadores do iFood. Toda essa massa de proletários que se esparrama a partir do mundo digital.
Como diria Florestan Fernandes, nossa classe trabalhadora é heterogênea, e seu traço distintivo é a superexploração.
Essas novas formas de trabalho vão tomar conta do mercado de trabalho?
Vão. Se a classe trabalhadora, os movimentos sindicais, sociais e os partidos de esquerda não desenharem um outro modo de vida, daqui a dez anos eu vou dizer "está muito pior". Com o mundo da internet, todos podem ter um tipo de trabalho onde não tem mais limite de jornada, não tem mais dia e noite.
A reforma trabalhista veio para formalizar algumas das formas de trabalho mencionadas pelo senhor, como a terceirização e o trabalho intermitente. É possível dizer que ela veio para modernizar as relações de trabalho?
Dá para dizer que ela escravizou. Na escravidão, o senhor de escravo comprava o escravo, na terceirização ele aluga. A contra Reforma Trabalhista do Temer [veio] para quebrar a espinha dorsal da CLT.
A prevalência do negociado sobre o legislado. A ideia de flexibilidade da jornada e do salário. A piora das condições de salubridade. Até coisas perversas, como as trabalhadoras e os trabalhadores tem que comprar seus uniformes. O transporte antes era uma obrigação das empresas, não é mais. A restrição da Justiça do Trabalho.
Como a Reforma refletiu no Judiciário?
Brutalmente. Primeiro, a queda de reivindicações judiciais. A ideia é acabar com a Justiça do Trabalho.
Esse foi o papel do Temer, devastar. E é preciso reconhecer que ele foi muito competente.
Comente um pouco o desemprego e a explosão da informalidade no nosso país.
Nós falamos até agora do trabalho precário, que tende a ser a regra, e a exceção é a plenitude dos direitos. O trabalho precário, informal, intermitente é a antessala do desemprego.
O desemprego no Brasil hoje é de 13 milhões de pessoas. Mas o desemprego por desalento são mais 5 milhões. Sem falar nas múltiplas modalidades que oscilam entre a informalidade real e a informalidade legal. O resultado é que nós temos uma massa sobrante de trabalhadores e trabalhadoras impressionante.
É por isso que o nível de desemprego por desalento é alto. O desalento não é o trabalhador ou a trabalhadora que não querem mais buscar emprego porque não precisam. Eles não buscam mais emprego porque estão fazendo isso há um, dois anos. Para buscar emprego você tem que acordar cedo, ter dinheiro para condução, para alimentação. É muito custoso.
O desemprego é o flagelo mais brutal. E cada vez mais esse bolsão de desempregados se confunde com o bolsão de subempregados, de informais intermitentes, porque todos esses vivenciam muitos horários de suas vidas em que deveriam trabalhar para sobreviver, na condição real de desemprego.
O trabalho informal foi estimulado durante um período, com a inclusão do Simples, do Micro Empreendedor Individual (MEI), por exemplo. Por que isso acontecia?
O sistema sabe que vai criar bolsões de desempregados, e não tem mais a sopa das seis para eles. As políticas sociais estão cada vez mais em retração. É aí que surge uma palavra tão mágica quanto mistificadora: empreendedorismo. Você querendo você consegue.
Você vai pegar o que te restou de dinheiro. Ah, mas não tenho nada. Você tem uma casa, tem um carro? Vende e vai empreender. Vai fazer o que você sabe, começar a vender doce de leite, cachorro quente, pipoca.
É incentivar no trabalhador que não tem nada a ideia de ser patrão de si próprio e ganhar um dinheiro que o tira da condição de assalariado, que ele sabe que é ruim.
O avanço da automação trazia a promessa de que os trabalhadores se veriam livres do fardo do trabalho e teriam cada vez mais tempo livre. Mas, o que vemos é o oposto: trabalhamos cada vez mais e temos cada vez menos tempo livre. O que aconteceu no meio do caminho?
A impostura capitalista. É uma promessa que esconde a realidade. A automação é para aumentar a produtividade do capital [e] para reduzir a força de trabalho, que é tratada como custo.
O capital é muito econômico nos seus custos. Ele sabe que o seu lucro aumenta, a sua produtividade é maior, quanto mais ele economiza e impede o desperdício. E ao economizar e impedir o desperdício, ele tem uma tendência intrínseca de reduzir trabalho humano e ampliar trabalho morto, o maquinário.
Quanto mais máquinas e quanto menos trabalho humano, melhor. Só que tem um limite: capitalismo sem trabalho humano não gera mais-valia. Não é possível o capitalismo se reproduzir sem trabalho humano. [Assim] o capital acaba, sem querer, criando seu próprio coveiro.
O que você vê de novo que possa servir como exemplo na superação destas dificuldades?
Nós temos três ferramentas: sindicatos, partidos e movimentos sociais. Algumas delas estão bem enferrujadas, mas eu não jogo nenhuma ferramenta fora se não tenho uma melhor.
Tem aqueles colegas que às vezes dão saltos no escuro: "ah, não dá para esperar mais nada da classe trabalhadora". Tá bom, eu vou esperar então dos intelectuais a revolução? "Ah, partidos estão fora". Tá bom o que eu boto no lugar dos partidos hoje? E os sindicatos? Estão em uma crise danada, mas não é possível resgatar um sindicalismo de classe?
Cada um desses três instrumentos precisa aprender um com o outro e se somar na sua força e na sua debilidade. O movimento social é decisivo e tem seus limites, os partidos são decisivos e têm seus limites e os sindicatos são decisivos e têm seus limites.
Segundo, retomar uma luta de base. Não adianta uma vanguarda achar que está certa e ir caminhando, porque às vezes ela se arrebenta, e quando está no sufoco ela chama a base...
Terceiro, olhar o que é novo nas lutas sociais, as novas formas de luta. Em parte da classe trabalhadora européia mais precarizada, que não tem mais nenhum direito, eles estão se autodefinindo como precariado e criando associações do precariado, que são como movimentos sociais do precariado.
Por fim, na nossa ação todo o oxigênio não pode estar voltado para a institucionalidade. Qual é a prioridade? Garantir representação parlamentar ou organizar a massa da classe trabalhadora?
Nós estamos em uma era das contrarrevoluções. Não será recuperando uma política de conciliação de classes que nós vamos sair desse ataque. O empresariado não quer mais conciliação, quer devastação. Eles querem nos devastar, nós temos que saber como devastá-los.
Edição: Rodrigo Chagas