Memória

O que faz o Grupo de Trabalho Perus, ameaçado pelo governo Bolsonaro?

Ex-secretário de Direitos Humanos explica a importância da análise das ossadas encontradas em São Paulo, em 1990

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Mais de 70% das ossadas já foram analisadas pelo GT iniciado em 2014
Mais de 70% das ossadas já foram analisadas pelo GT iniciado em 2014 - Foto: Clara Borges

O Decreto 9.759 do presidente Jair Bolsonaro, que extinguiu os conselhos e comissões para enxugar gastos da administração pública, também vai impactar o trabalho da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, afirma que as organizações de direitos humanos repudiam o encerramento do grupo de trabalho, mas que não ficaram surpresos com a medida. “É um governo errático, que tem compromisso com um passado violento”, diz. 

Sotilli é ex-secretário municipal de Direitos Humanos em São Paulo (SP). Foi na sua gestão que se iniciou o Grupo de Trabalho Perus, um dos possíveis prejudicados pelo decreto de Bolsonaro. O GT é responsável por analisar as 1.047 ossadas retiradas de uma vala clandestina na Zona Norte da capital paulista, encontrada em 1990.

O ex-secretário afirma que o governo prejudicaria um processo “histórico e de humanidade extrema”. Segundo ele, o grupo ainda tem amparo jurídico baseado em acordo no convênio entre a União, a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e a Prefeitura de São Paulo. O orçamento anual do projeto é de R$ 800 mil.

Em nota, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos negou que o grupo vai ser encerrado.

O ativista de direitos humanos defende que o Estado brasileiro ainda deve muito em relação à memória da ditadura brasileira. “Eu não tenho dúvidas: se o Brasil tivesse feito justiça, a condenação e a prisão de torturadores teria sido um exemplo e nós não teríamos, hoje, um presidente eleito fazendo apologia à tortura e à violência de Estado”.

Confira a entrevista na íntegra. 

Brasil de Fato: Qual sua posição e do Instituto Vladimir Herzog sobre o decreto que pode impactar grupos de trabalho como o de Perus e Araguaia?

Rogério Sottili: É mais um ato contra a democracia, contra os direitos humanos, contra o direito à memória, verdade e justiça, que a gente tanto luta desde a redemocratização do Brasil. É um ato que a gente recebe com total indignação e repúdio. Mas não nos surpreende porque a gente sabia que este é um governo errático, que tem compromisso com um passado violento. Então, não nos surpreende que eles comecem ações de acordo com os discursos pelos quais eles foram eleitos — a promoção da violência e destruição dos direitos humanos construídos a partir da redemocratização.

Tem uma questão, porém, é que não identifiquei no decreto uma especificação nítida de que ele se refere a Perus, por exemplo. Isso posto, temos um convênio assinado pela Prefeitura de São Paulo, pela Unifesp e pela Secretaria de Direitos Humanos do governo federal e que dá legitimidade para continuar atuando até o fim deste convênio. 

É evidente que, em governos como esse, que não tem a menor responsabilidade com a legalidade e com os instrumentos legais, não é isso que vai sustentar um acordo, um convênio, uma pactuação. No entanto, isso nós dá uma ferramenta de resistência muito grande, para familiares e pessoas comprometidas se manifestarem e exigirem o cumprimento deste processo, especialmente o de Perus — que está na reta final e foi um processo lindo, histórico, de humanidade extrema.

O que faz o Grupo de Trabalho de Perus e qual sua importância? 

Em São Paulo, isso começa em 2014, quando eu era secretário municipal de Direitos Humanos. Numa conversa com a ministra, que era Maria do Rosário, dissemos que era a grande oportunidade, agora que, pela primeira vez, tínhamos um órgão do governo municipal, que poderia ajudar a acontecer a retomada da identificação e análise das ossadas de Perus, que estavam depositadas no Cemitério do Araçá.

O governo federal já vinha tentando com várias iniciativas, mas não tinha apoio local para realizar isso. E existia uma desconfiança brutal de todos os familiares, pelas várias tentativas frustradas de retomadas das análises dessas ossadas. Foi uma costura, que envolveu a Prefeitura de São Paulo, o Ministério de Direitos Humanos, com todo o apoio do governo federal.

Alugamos uma casa e fizemos um reforma, com a estrutura bancada pelo MEC [Ministério da Educação], através da Unifesp, para se transformar Centro de Antropologia Forense, de responsabilidade hoje na Unifesp.

Treinamos, em convênio com os peritos argentinos e peruanos, antropólogos brasileiros, que começaram um processo de preparação para que eles fizessem o processo de análise dessas ossadas. Isso ficaria de legado para a universidade e para o país, pois estaríamos formando peritos especializados em identificação e análise de restos mortais de pessoas vítimas de violência do Estado. 

O importante nesse processo foi conquistar, com muito cuidado no trato com os familiares [de desaparecidos políticos], a confiança deles — porque eles não acreditavam e não podiam imaginar policiais federais e policiais civis coordenando processo de análises. Ouvimos muitos familiares para saber o que eles queriam, o que era possível, o que garantiria a confiança deles para que eles pudessem apoiar esse processo. E não foi fácil. 

Já foi feita a análise de mais de 600 ossadas, faltam menos de 30%. E já foram identificados, nesse processo, dois desaparecidos políticos. É algo histórico e que está virando um ponto de referência, de análise e de formação.

O decreto vai na contramão da determinação judicial para que o trabalho seja feito. Qual o simbolismo do presidente, que já afirmou quando era deputado que “quem procura osso é cachorro”, em desmontar esses órgãos de participação popular?

É um governo que não tem o menor compromisso com qualquer institucionalização ou com qualquer legalidade. O que resta — para os democratas, organizações da sociedade civil, familiares de desaparecidos, mundo da cultura — é resistir a isso. E procurar todos os instrumentos possíveis, também do ponto de vista legal. Vamos entrar na Justiça para garantir a finalização desse processo; vamos entrar nos organismos internacionais para que a gente possa também dar luz e foco ao que está acontecendo no Brasil, para tentar inibir mais atos de violência contra a democracia brasileira. 

É evidente que uma continuidade desse trabalho não depende exclusivamente do governo federal. Isso não é propriedade do governo federal, que é parte desse processo. Nós temos a Prefeitura também, com que a gente gostaria de tentar de garantir, diante do que está acontecendo, um maior compromisso para que essa retomada continue acontecendo.

Ninguém tem a menor ilusão de que conseguiríamos avançar um centímetro nesse período de total desconstrução, de tal violência contra os direitos humanos, promovido por um governo que tem compromisso com a violência; por um presidente que tem como seu maior ídolo o maior assassino da história do Brasil, um torturador que deveria ter sido responsabilizado por todos os crimes que cometeu. 

O que temos que fazer agora, organizações da sociedade civil, partidos políticos que têm compromisso com a democracia, seja de centro, de esquerda ou de direita, é garantir que as instituições e pactos sejam respeitados.

Mas, com muitos relatos e trabalhos de historiadores que se debruçaram sobre esse tema, o período da ditadura militar ainda é muito recente para a história. O que ainda ainda tem que ser feito no âmbito, principalmente do ponto de vista do Estado?

Tem muito o que ser feito. O estado brasileiro fez pouca coisa. E é porque fez muito pouco que estamos vivendo o que estamos vivendo hoje. Eu não tenho dúvidas: se o Brasil tivesse feito justiça  — e fazer justiça é simplesmente cumprir a lei que define que crimes internacionais, políticos e de tortura não são anistiáveis — a condenação e a prisão dessas pessoas teria sido um exemplo para o Brasil e nós não teríamos, hoje, um presidente eleito fazendo apologia à tortura e à violência e à violência do estado. 

É porque não foi feito justiça que as pessoas se sentiram muito à vontade a continuar matando negros e jovens na periferia, criminalizando os movimentos sociais, matando militantes dos movimentos sociais e fazendo apologia à tortura e a crimes e assim por diante. 

A Argentina elegeu um presidente de direita [Mauricio Macri] que não teve, em nenhum momento, qualquer manifestação contra os direitos humanos e contra o direito à memória e à verdade e em favor à ditadura. Se ele tivesse feito isso, ele jamais teria sido eleito. Lá, após a queda do general [Jorge Rafael] Videla, que presidiu a Argentina, um mês depois instalaram a Comissão da Verdade, que responsabilizou todos os criminosos, presidentes e militares, pelos crimes da ditadura. Tanto é que o general Videla morreu na prisão pelos crimes que cometeu. Lá foi feito o exemplo.

Então, nós temos muito o que fazer. A primeira questão que precisa ser levantada é que o Supremo Tribunal Federal (STF) paute novamente a questão da reinterpretação da Lei da Anistia. Não é possível que o Estado brasileiro tenha sua assinatura em um pacto internacional que reconhece crimes políticos como não-anistiáveis e não obedeça isso. Se o Supremo não fizer isso, ele estará corroborando com esse clima de violência que estamos vivendo. Começa por aí. 

A segunda coisa é continuar fazendo reparação, especialmente com a memória. Precisamos contar o que aconteceu no Brasil. Contar que, durante a ditadura militar, tivemos violência como nunca tivemos; tivemos corrupção como nunca, porque não existia transparência nenhuma; que foram cassados direitos políticos de milhares de pessoas; que houve censura política à imprensa; que houve mortes e desaparecidos políticos; que teve sequestro de crianças e adolescentes... Enfim, que foi um período que a gente imaginava que não iríamos mais viver. Mas, se a gente não fizer essa lição de casa, contar o que aconteceu e fizer justiça, nós vamos continuar, por muito e muito tempo, vivendo em um país violento em que pessoas se elegem rasgando a Constituição brasileira. 

Edição: Aline Carrijo